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11 maio 2023

Velhos corpos

Hoje faz sol. O espírito dos corpos eleva-se com a luz daquela estrela.

Vagueio por entre os corpos, como sempre o fiz, faço e farei. Procuro neles as memórias, os sentimentos, que os anima. Vejo os medos. Toco-lhes no coração. Observo as caras, os gestos, as interações que lhes dão significado, que lhes amedrontam.

Há dois corpos que se aproximam de mim. Sentam-se no banco de jardim ao meu lado. Pegam em pães duros. Desfazem-nos com as suas mãos cheias de nódulos e rugas.

Aqueles meros gestos provocam-lhes dores intensas em cada articulação, mas mesmo assim insistem em partir aqueles pães.

Os patos do lago aproximam-se daqueles corpos tensos e curvados pelo peso que carregam. Começam a grasnar, a pedir aquele precioso pão partido com dor.

Ao longe vejo dois corpos fardados. Aproximam-se a correr. Toco-lhes no coração. Eles abrandam. Prolongo este momento.

Os velhos corpos olham um para o outro. Lágrimas escorrem pelos sulcos das caras de ambos. Um sorriso cresce nas caras que se olham com carinho.

Há um amor ali que se estende para quem os rodeia. Os patos. Os dois polícias que se aproximam devagar.
A rodear esta cena há um silêncio. Um silêncio quente como os raios do sol que lhes tocam.

Os corpos gastos pelos anos que já passaram dão as mãos e levantam-se. Sorriem. Relembro o momento em que eles se conheceram.

Era um dia como este, quente, cheio de luz. O verde dos campos chegava-lhes aos joelhos. E o olhar e o sorriso que lançaram era como este que presencio agora.

Os corpos fardados chegam entretanto. A presença das fardas acorda os corpos que se prendiam à vida por um sorriso, por um olhar.

Olho para os quatro corpos. Há vírus em cada um deles. Multiplicam-se. Dois deles estão na minha lista. Dois deles serão levados à mesma hora, no mesmo momento, fechando o ciclo que iniciaram há muitas décadas...

 

 

Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim