Em cada corpo há uma centelha de esperança. Todos os corpos que passam por mim acreditam que algo que eles façam pode determinar o futuro. Que podem mudar o inevitável. Esquecem-se que eu sou a única certeza.
Há um corpo que escreve intensamente no seu computador. Negoceia uma extensão da sua morte. Está a criar a obra-prima que ninguém irá ler.
Vive sozinho. Raramente fala com alguém. Vive isolado há anos. Mas bastou um encontro literário para apanhar este vírus.
Olho para ele e vejo o preciso momento em que isso aconteceu. Um corpo jovem aproximou-se com o seu livro a pedir um autógrafo. Um gesto simples, numa sociedade que menospreza a grandiosidade das coisas simples, pequenas...
A troca de mãos do livro. O pedir de uma esferográfica emprestada. Um coçar de olhos. Vírus que penetram pelas mucosas, num corpo solitário e descrente.
Um gesto simples e gratuito. Uma soberba, contra uma devoção. Um ser mínimo, zombie, a agir de acordo com a sua natureza, sem fingimentos, sem ego, só com uma pulsão: sobreviver.
Uma troca que o condenou, pensará ele, ou quem daqui a uns dias descobrirá este corpo apodrecido no chão, à frente de um texto apagado por um simples erro de teclas.
Ele continua a escrever. «Ainda não! Ainda não!» O vírus continua a espalhar-se. Aproximo-me. Ele engana-se nas teclas. Grita. Seguro-lhe na alma, antes do corpo cair...
Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim