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11 maio 2023

Lista

Caminho pelas ruas vazias da cidade. Vejo prédios com corpos nas varandas. As crianças e os seus corpos pequenos espetam os narizes contra o vidro. Desenham na névoa sonhos feitos nuvens, corações...

A chuva cai sobre ninguém. As gotas atravessam-me e juntam-se a tantas outras. Escorrem como ribeiras pelas estradas de alcatrão vazio.

Passo por um cão que se esconde junto a uma porta. Ele assusta-se com a minha passagem. Toco-lhe no coração e aqueço-o com a certeza que ainda não está na hora.

Mais à frente passa por mim um corpo a correr. Ele está na minha lista, mas ainda não o sabe. Não será hoje, mas está para breve. Vejo o vírus a reproduzir-se dentro dele. Tenho pena da família e pelo que vai passar, contaminada...

Olho para o lado e vejo o corpo de uma mulher parado na esquina. À espera. Fuma um cigarro. Olhar vazio. A solidão abraça-a, sempre o fez. Mas agora está mais pesada, escura... Nada posso fazer.

Dois corpos seguem protegidos, uma mãe e uma filha, rua abaixo. As mãos, apesar de dadas, estão separadas. Há uma barreira de látex entre aqueles dois corpos. Mas a divisão que me preocupa mais é a que se está a formar com esta quarentena.

Um outro corpo, jovem, atravessa-me. Sinto-o a tremer com o arrepio repentino. Olha para trás, como me visse, mas eu sei que não. As lágrimas não o deixam reconhecer-me. Estive há pouco com a namorada dele, uma médica...

Continuo. Passeio-me por estas ruas e sinto as diferentes dores de cada corpo que me rodeia. Há um, ou outro, que vejo na minha lista de visitas. Uns será esta noite, outros... mais tarde... 



Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim