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11 maio 2023

Leva-me!

Vejo um corpo deitado. Velho. Usado.

Na cara, na pele, sulcados os anos que passou. Em cada ruga uma história. Uma aprendizagem. Uma resistência.

Estendido numa cama branca, num quarto beije, onde se encontram fotografias de sorrisos, caras sérias. Vejo livros. Uns de papel amarelo, pontas dobradas. Outros mais recentes, ainda por abrir.

Em cima da mesa-de-cabeceira um desenho infantil, onde palavras de amor se encontram pintadas a arco-íris. Ao lado, um terço, baço do uso...

Percorro aquele quarto em silêncio. Reconheço cada momento em cada objeto... Penso em como o ser humano precisa de âncoras físicas para se lembrar dos seus momentos mais importantes. Para se lembrarem de um sorriso, de uma palavra, de um toque.

Olho para o corpo. Quieto. Tapado por um lençol de uma cor que se perdeu. Uma manta sem calor. Por baixo, sei que há uma fralda. Não sinto o cheiro, mas conheço este corpo como ninguém o conheceu, ou o conhecerá.

O peito reage suavemente a um estímulo do cérebro para manter a sua sobrevivência. O coração marca o ritmo... Piano... Pianisimo...

Vejo as mãos. Passo as minhas pelas do corpo. Viajo por aquelas linhas. Recordo a forma como segurava a mama da mãe, pegava no nariz, batia-lhe na cara... Aprendia a controlar os movimentos.

A primeira carícia controlada em alguém. A primeira noção das texturas. A terra na boca... Os primeiros lábios. A primeira mão de um adeus.

Mãos que criaram amor, mostraram ódio, despejaram raiva, deram conforto.

Subo o meu olhar para aquele rosto, sem sorriso, parado, com olhos fixados num teto branco, despido de emoção. Sei que ele acompanha as minhas memórias, que são dele.

O tempo que aqui estou é indiferente para mim, porque toda a multiplicidade das linhas de vida, resumem-se em mim num ponto. Mas para este corpo usado e velho... Um minuto são milhares de vidas que viveu. Uma hora uns tantos milhões.

Vejo a repetição. As alterações dos pormenores. A blusa rosa que passou a vermelha e as calças azuis a verde. A discussão que afinal não foi tão violenta, mas que teve consequências enormes.

Sinto a confusão... Mas, principalmente, a solidão. Entra uma senhora com um fato tipo astronauta. Deixa o comer numa mesa. Ajeita os chinelos. Vai embora.

O corpo gasto, sulcado, ergue a cabeça. Senta-se na cama. Suspira.

- Sei que estás aí. Leva-me!

 

 

Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim