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11 maio 2023

A 355ª vez

Ele olha pela janela pela 354ª vez hoje. Olha para os pássaros e as nuvens livres, em ruas vazias.

As árvores apresentam novas roupagens. As flores da vizinha, novas cores.

Hoje, finalmente, ele lavou a roupa, passou a lavada, fez o almoço e jantar.

Senta-se na poltrona. Acomoda-se na marca moldada pelo passar dos dias. Desliza o dedo pelo ecrã do smartphone. Nenhuma notificação no Facebook, nenhuma mensagem no WhatsApp, ainda menos interação no Instagram. Ainda tenta ver o email, na esperança de...

Atira o telemóvel para o lado. Pega no comando da TV. Percorre as centenas de canais por cabo, do primeiro mundo. Notícias. Mortes. Pandemias. Crimes. Corrupção. Tremor de terra num país que nunca visitou, nem visitará. (Eu sei...) Pessoas traduzidas em números tão grandes que ele não consegue imaginar a dimensão. Desliga o aparelho. Desinfecta o comando.

Aproveita e desinfeta o smartphone pela vigésima vez desta manhã.

Levanta-se. Vai à casa de banho. Lava as mãos durante 20 segundos. Mija. Descarrega o autoclismo. Lava as mãos durante 20 segundos.

Vai para o quarto. Tenta descansar, dormir, mas não consegue.

Levanta-se. Estende o tapete. Medita. Pensa. Recorda. Chora... As lágrimas prenunciam os soluços. A dor que carrega todos os dias rebenta as comportas.

Hoje foi mais um dia em que ele conseguiu levantar-se e fazer algo. Mas este não conta. Os dias dele simplesmente passam enquanto a loiça se acumula até ele não suportar mais a visão. Em alguns come diretamente das latas que abre, só porque ele sente que, por algum instinto ainda existente, tem de sobreviver...

O telefone toca. Ele limpa as lágrimas. Assoa o nariz. Atende. É um amigo dele que lhe liga para contar como já não aguenta a mulher e os filhos. Que tem medo de perder o emprego. Esta quarentena!!!

Ele ouve o que o outro diz. Tenta compreendê-lo. Diz-lhe as coisas certas no timing correto. Até se ri e conta piadas.

À medida que vejo a dor dele crescer no coração, o amigo despede-se mais animado. Agradece-lhe e diz que ele é um gajo porreiro.

Ele vai pela 355ª vez à janela. Vê o sol a pôr-se. Abre a janela. O fresco da noite aproxima-se. O último cheiro das flores enrola-se pelo prédio até às narinas dele.

Sobe o parapeito. Abre os braços...

 

Faço-o esquecer esta vida com o meu abraço, enquanto olho para um corpo nas ruas vazias...



Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim