Os dias artificiais deste mundo continuaram a passar com a ausência da Morte. Eu permanecia na minha rotina. Acordava. Tomava o pequeno-almoço no alpendre. Contemplava sem tempo a paisagem. Tomava banho. Lia. Passeava. Escrevia. Falava com os animais...
Languidamente, o tempo foi passando. Entrava num Inverno interno em mim. "Assim como está fora, está dentro", li eu, uma vez, no livro que carregava para todo o lado.
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- Que livro é esse?
- Não sei! Acordei com ele, ao meu lado.
- Conheces a língua?
- Estranhamente, conheço.
Outra vez, o véu. Outra vez, o silêncio.
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Pego no livro, leio a capa, a lombada, a contra-capa... Atiro-o para cima da mesa e contemplo o falcão que pousou no alto de uma árvore seca, à minha frente. O que ele verá? O que ele já viu?
O piar dele ecoa no vale e com as ondas sonoras ele afasta-se. Deverá ir em direção de algum outro ponto alto, algum outro sítio, onde um velho contempla o nada, porque é isso que ele sente em si.
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- O que contemplas?
- O nada.
- O nada?
- Tento esvaziar-me, para me voltar a encher.
- Com experiências novas?
- Com vidas...
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Levanto-me! Decido caminhar...
Atravesso a rua, onde mora a tal criança dos meus sonhos. Vejo-a de mão dada com o pai, a falar de mil e uma coisas, ao mesmo tempo. Tudo a fascina... Até um mero espectro, para quem ela sorri.
Páro. Quedo-me ali a olhar-lhe nos olhos e a reconhecer uma essência que é minha. Vejo naquele momento, uma vida minha, num mundo diferente das ruas de Acre, na altura das Cruzadas.
Sem me aperceber, sigo num cavalo por essas mesmas ruas, onde protejo a fuga do Grão Mestre. Abro caminho, até que uma seta me atinge e caio do cavalo.
Quando abro os olhos, vejo uma mulher com tatuagens na cara a sorrir para mim. Levanta-me e leva-me para a sua casa, onde correm crianças e está sentada uma anciã.
A visão desfoca-se e volto a cair... Nos braços da mesma mulher, não... Da Morte!
- És tu! Tu és ela!
- Que dizes, velho guerreiro?
- Eu vi-te! Nós partilhámos um tempo. Partilhámos vidas...
- Talvez...
Ela recua, esconde-se por detrás do véu, mas eu agarro-a. Desta vez com a força que resta em mim. Preciso de saber. Há uma urgência...
- Diz-me, por favor!
- Não posso...
- Eu vou desaparecer!
- Não!
- Eu sinto...
- Mas, mas... Tu sabias o perigo de não apagares as memórias, porque não apagaste...
- Eu queria lembrar-me de ti...
- E eu, que tu te lembrasses...
E, num beijo, reunimos as nossas lágrimas, a nossa memória, o nosso amor... a saudade... até eu desaparecer numa coluna de pó de estrela.
Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim