Pesquisar neste blogue

08 dezembro 2021

Colo

Ela subiu as escadas do alpendre, passou por mim e sentou-se na mesa. Os olhos dela fixaram-se nos meus, de forma fugaz, e depois voaram com o falcão que ali pairava.

Entrei em casa e fui até à cozinha. Enquanto preparava a chaleira, olhava para trás, pela porta. Ela ali estava, como há momentos atrás.

--

- Ah! Sim! Pois, vieste... Vou buscar a água quente. Pus-lhe umas ervas, como me ensinaram os sarracenos. Espero que gostes...

Perdi-me nas palavras. Saiam como sangue de uma ferida aberta. Falei por todos os anos em que lutei numa terra longe da minha, por uma religião que nada me deu e que tudo me tirou.

A Morte ouvia-me. Sem me julgar, sem comentários, sem...Simplesmente, ouvia-me.  E eu? Falava, falava, falava... A noite caiu e ali continuávamos.

Até que me calei. Do nada. Fiquei sem mais nada para contar. Um vazio entrou na minha cabeça e adormeci no colo da Morte.

Ainda me recordo de ela me dar festas no cabelo, enquanto dormia, chorava, acordava e voltava a adormecer. O peso de uma vida, despejou-se ali. No colo dela.

No outro dia, quando acordei, estava só, sobre a cama. Levantei-me à pressa e olhei à minha volta. Procurei-a, mas ela não estava

 Ainda gritei o nome dela, um nome que me lembrei e esqueci, no momento em que o pronunciei.

Silêncio.

Saí. Olhei à minha volta, vi a paisagem descaracterizada, morta e comecei a construir a casa dos meus sonhos.

--

Acordei da lembrança. Peguei nas canecas. Coloquei a da Morte em frente dela e sentei-me.

Ficámos ali, a olhar para o fumo do chá e para o pôr de sol, que se despedia por detrás dos montes.



Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim