Ali ficámos. Sentados. Abraçados. A chorar. A rir. Em silêncio... As palavras recusavam-se a fluir.
A Morte, num repente, afasta-se de mim. Olha-me... Chocada! Assustada! Em pânico!
Sem palavras começa a correr pelos campos. Vou atrás dela, alterando o mundo que se refletia à minha volta. Mas ela escapava-se a cada modulação no terreno. A cada buraco do chão.
Até que parou. Enfrenta-me o olhar e... desaparece.
Os dias foram passando. A minha rotina estabilizando. As imagens da criança, ou qualquer outra, desapareceram.
Voltava a ser um velho guerreiro a viver numa cabana, num mundo criado por mim.
No entanto, a Morte deixara de me visitar. O que ela terá visto?
Desde que nos conhecemos que ela se impediu de ver as minhas vidas. De ver os meus múltiplos destinos, propósitos. Recusava-se a ler a minha alma. Nunca percebi o porquê... Para me defender? Para se defender?
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- Olá, guerreiro!
- Quem és tu? Onde estou?
- Morreste! Lembras-te?
- A batalha, sim... Uma seta, no coração!
Ao dizer isto grito de dor e levo a mão, como num reflexo, ao coração. Mas ela estava limpa, assim como o meu corpo.
Foi nessa altura, ao olhar para a minha mão, que reparei que estava velho. Há quantos anos não a via propriamente.
- Podemos mudar a tua aparência, se quiseres! Enquanto não reencarnares, podes ter a aparência que quiseres e viver onde quiseres. Tudo será criado por ti, à tua vontade. E, também, apagaremos as tuas memórias, mas não as tuas lições. Essas ficarão.
- Reencarnar? Memórias? Lições?
A minha cabeça parecia que ia explodir. Onde estava Deus? O paraíso prometido pela guerra santa? O inferno garantido pelo sangue que manchava as minhas mãos?
- Desculpa, uma coisa de cada vez!
- Sim...
- Vamos começar pelas memórias?
- Não, preferia pelo sítio onde vou viver. Quero ainda perceber o que se passou...
- Não é comum, esse pedido. A maior parte das almas pedem-me para apagar tudo, devido à dor que sentem por ter morrido e pelas pessoas que deixaram.
- O que acontece às almas que querem o mesmo que eu?
- A maioria fica presa entre mundos. Ficam presas pelos cordões que as liga às outras almas...
- Cordões?
A sorrir, a Morte abana a mão, como se me aconselhasse a esquecer, que não era importante, para já. Mas, esse gesto, recordou-me algo... Uma vida que não esta, que tinha acabado. Uma outra...
- Eu conheço-te!
- Claro, sou a Morte.
- Não, eu conheço quem tu eras antes...
A Morte com essas palavras fechou a cara com um véu de sombras e levou-me para um campo.
- Esta será a tua casa, até voltares a reencarnar. Voltarei amanhã...
- Morte!
- Sim?
- Como crio as coisas?
- Basta pensar e o mundo à tua volta refletirá os teus pensamentos... e as tuas emoções. Cuidado!
Estava prestes a partir, quando a paro segurando-lhe a mão. Ela olha-me sem véu e os nossos olhos dizem tudo o que precisávamos de saber.
Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim