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27 agosto 2021

Revelação

Estávamos abraçados à frente do alpendre. A chuva continuava a cair. Eu e a Morte, um abraço eterno, que juntava naquele momento todas as vidas, passadas e futuras.

O tempo seguia. A água ia sulcando a terra. Os trovões marcavam o ritmo e os relâmpagos caiam à nossa volta. O mundo desabava e nós ali, os dois.

A pouco e pouco a tempestade foi amainando. O sol começava a surgir com raios tímidos, filtrados pela nebulosidade cinzenta. As lágrimas corriam de forma mais lenta. O abraço menos apertado...

Levantei a cabeça do peito da Morte. Olhei-a nos olhos. Vi as minhas vidas, as que me levaram ali. Os meus sentimentos. As minhas mortes.

Ali, vislumbrei aquilo que havia esquecido. O que perdi. O que ganhei. O que falhei em aprender. As lições que tirei. As minhas infâncias, as minhas velhices, os entretantos.

Vi também as memórias genéticas de cada vida que pesavam em mim. Os propósitos daquele conjunto de pessoas que desaguaram em mim.

Senti Amor, Liberdade, Família... Saudade, Medo, Coragem, Dor... Apego, Raiva, Desejo, Sonho, Ambição, Traição, Ilusão, Desilusão, Agressão... Tudo o que um ser sente. Tudo ali, num só olhar.

- Bem-vindo, de volta a ti!

Aquelas palavras aqueceram-me. Fechei os olhos para as sentir.

Quando os voltei a abrir, a Morte já lá não estava. A única coisa que via era o mar. Um horizonte que se estendia à minha frente, que me ligava ao infinito.

Ali permaneci, até o Sol se pôr. Até as estrelas surgirem. Até uma estrela cadente cortar o céu.

Levantei-me. Dei um passo e voltei para a minha cabana. Lá a manhã despontava. As abelhas andavam à volta do lilás das glicínias em flor. As lebres saltitavam. Ao longe, via o contorno do falcão-peregrino que me sempre acompanhou.

Sentei-me nas escadas do alpendre. Baixei a cabeça. Lá em baixo, as formigas labutavam fervorosamente.

Olhei as minhas mãos. Em cada sulco, em cada calo, uma vida que vivi. Cada vida que tirei. Que perdi...



Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim