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06 junho 2021

Saudade

Quando acordei, só me acompanhava a memória do colchão e da almofada. Só eles eram testemunho de alguém ter dormido ali.

Sorri. Sentei-me e vi um bilhete na minha mesa-de-cabeceira. Lá escrito só um "Obrigada!". Voltei a pousar o papel, com um carinho que me surpreendeu. Mesmo o sorriso que insistia manter-se na minha cara, era estranho para mim.

Levantei-me e fui até à casa de banho. À minha volta mantinha-se o cheiro dela. O aroma que ela tinha partilhado comigo naquela noite. Senti-o como um abraço matinal.

Ao despir-me, olhei para o meu corpo, toquei-o... Ele era real. Sentia-o como há muito não o fazia. Recordei-me de cada toque dela, da vontade que nos uniu, da forma como os nossos corpos se (cor)respondiam.

Ao tomar banho, senti a água como há muito que não o fazia. Cada gota que tocava em mim, estava viva, gritava liberdade.

Limpei-me, vesti-me e fui comer. Preparei o pequeno-almoço habitual e fui para o alpendre. Lá fora era Primavera. As borboletas dançavam em casal. As abelhas zumbiam à volta das flores abertas ao sol, espalhando a sua cor e os seus cheiros inebriantes.

Lá ao fundo o velho casal de corvos voava em conjunto. Até o saca-rabos aproximou-se com a sua companheira.

O meu exterior refletia perante mim o que eu experimentava no meu interior. No meu coração. Na minha alma.

Fiquei horas a ver o festival que se celebrava. O sol foi caminhando pelos céus, na sua carruagem, enquanto eu ficava ali, a contemplar o esplendor criado pelas divindades.

A leveza que me rodeava, acabou por me inebriar e transportar para um sonho.

Via a criança junto a um charco. Brincava sozinha no seu mundo de faz de conta. Naquele charco haviam piratas e um herói que os enfrentava com uma cana. As lutas que a criança travava eram destemidas, corajosas, sempre contra as probabilidades.

No final, havia sempre o prémio do salvamento da pessoa amada, feita refém, pelos malvados. Mas a brincadeira não acabava sem uma fuga heroica, onde a pessoa amada também lutava, lado a lado da criança.

No final, havia um banquete naquele monte de areia, junto a um charco cheio de canas, onde patos se banhavam.

De repente, a brincadeira parou. A criança levantou-se e foi ter comigo. Olhou-me nos olhos e apontou para o pôr-do-sol.

- Vê!

- É um pôr-do-sol!

- Não, é magia... Nenhum pôr-do-sol é igual. Há sempre uma diferença.

Fiquei ali a olhar para aquela criança e perguntar-me onde ela estaria hoje...

Quando acordei, a Morte estava perante mim a sorrir. A noite já se tinha instalado.

- Desculpa, acho que adormeci.

- Pelos vistos...

Rimo-nos. Quando parámos, ficámos em silêncio. Não daqueles que incomodam, que nos magoam, que nos punem. Não! Este era o silêncio da cumplicidade. O da partilha.

Enquanto comíamos, contei-lhe o meu sonho. Falámos sobre essa criança e sobre como a minha memória não a registava nas vidas que tinha vivido.

- Vais descobri-la!

E ao dizer isto, a Morte sorriu-me, acariciou o meu rosto e partiu.

Vi os seus passos leves a caminharem na direção da Lua. Hoje iria dormir sozinho... E essa percepção surpreendeu-me. Assim como a palavra que vocalizei a seguir:

- Saudade!



Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim