A noite foi passada de olhos abertos. Não conseguia adormecer. Fechava os olhos e a imagem da criança vinha-me à cabeça. Decidi levantar-me.
Fui até à cozinha e olhei pela janela. Lá fora, a noite passou a dia. Vejo-me outra vez, lá ao fundo, junto à estrada. De mãos dadas, comigo, estava uma mulher. Ambos ligados por duas mãos, que se prendiam de forma terna e doce.
Éramos iguais, não na forma dos corpos, mas sim na felicidade. O olhar, o sorriso, os gestos, tudo parecia ligar-nos. Duas almas em comunhão, em partilha de vidas.
Ela corre pelo descampado e começa a dizer onde cada coisa fica e o que se podia fazer e criar e... Vejo tudo montar-se na imaginação dela e tudo a fazer sentido.
Eu rio-me com o que ela diz, não por serem disparates, mas sim por ser um sonho a concretizar-se. Estou feliz, sinto-me feliz, como nunca tinha sentido até ali.
Apesar de ver isto tudo, nada sentia, porque nada me lembrava. Reconheço-me ali, mas não me lembro de o ter vivido.
Eles beijam-se ali, no meio de um terreno seco. Dos corpos jorra a água que irá dar vida àquele local. Vejo crescer a cada passo que dão ervas, flores, pastos, árvores... A correr atrás deles lebres, raposas, saca-rabos. Até reparo numa pequena salamandra de fogo que se tenta escapar de uma cegonha que lá em cima voa.
O Amor, outra vez... Mas, desta vez, expresso de outra forma. Expresso na linguagem da esperança. Do sonho.
A noite volta a materializar-se perante mim. Com ela as estrelas e as sombras da vida que corre, que passa.
Pego no meu copo de água e vou até ao alpendre. Sinto o cheiro dela. Só pode ser. Um cheiro leve, subtil, que se entranha em cada célula do meu corpo. Um cheiro que combina, na perfeição, com o seu corpo, com o seu movimento, gargalhada, amor...
Mas assim como o senti, ele desapareceu. Uma memória fugaz, perdida nos ares da noite.
Fiquei ali, a olhar para a noite durante ainda algum tempo. Quando estava prestes a levantar-me oiço passos. Quem seria?
Preso no momento do impulso, deixei-me cair na cadeira outra vez.
- Olá!
- Morte?
- Chiu! Hoje não me chames assim...
- Então?
- Preciso de ti...
Aquele pedido fez-me levantar de forma decidida e ir até ela. Abri os braços e acolhi-a no meu peito. Não sei o tempo que ela demorou a chorar. Não sei como surgiu o beijo. Nem o desejo que nos impulsionou.
Os nossos corpos entregaram-se um ao outro. Sentimos cada centímetro da nossa pele, cada gota de suor, cada lágrima que libertámos. O fogo que nos consumia, que nos fazia mergulhar nos nossos corpos, transformava-nos. Recriava-nos.
Acabámos deitados na minha cama, a rir, a chorar, a falar, até que adormecemos nos braços um do outro.
Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim