Sem nos apercebermos. Tudo à nossa volta se desintegrou e se transformou na minha velha e confortável cabana, com alpendre.
Ficámos um longo tempo em silêncio. Eu, sentado numa das cadeiras, olhava para o chão incrédulo com aquilo que sentia: "Amor?".
A Morte caminhava pela parte da cozinha a preparar algo para comermos. Cantarolava uma canção que tinha aprendido numa das minhas tantas vidas.
A pouco e pouco, o ar foi deixando de estar denso e passou a ficar mais leve. Já conseguia respirar de forma regular, sem sentir o coração a querer saltar do meu peito.
- Fiz-te um pequeno petisco. Come!
- Eu... Não me lembro... Porquê?
- Talvez seja cedo ainda. Ou então não tens que te lembrar.
- Mas o Amor é importante, não é?
- Dizem que sim.
- Tu sentes Amor?
A Morte, com a minha pergunta, cospe o chá que bebia e começa a rir-se à gargalhada. Eu sei que foi espontâneo e sem mal, mas o meu ego acusou o ato e amuei.
Ela acabou por recolher e de lavar a loiça, depois de ter pedido algumas desculpas, às quais nem liguei. Tinha o ego ferido e não havia volta a dar...
Apesar de tudo, ela ali permaneceu. Pegou num dos vários livros espalhados pela minha cabana e começou a ler. Era um sobre o Medo.
- Sabes, costuma dizer-se que o contrário do Amor não é o Ódio, mas sim o Medo. Já tinhas ouvido isto?
- ...
- Até faz algum sentido. Se pensarmos bem, só sentimos ódio por alguém que já amámos. Ou seja, há uma base de Amor neste sentimento extremo. No entanto, onde há Medo, não há Amor. O Medo é estéril e o Amor é criação. Um é areia do deserto, o outro é fogo, seja em chama, lento, ou incêndio.
- Não sei se concordo com as tuas metáforas, mas como não me lembro... aceito-as!
- Ah, mas o meu excelentíssimo amigo decidiu falar...
Assim que a Morte acabou de dizer isto, começámos a rir que nem doidos. Um riso vindo de dentro, de muitas vidas... Quem diria, eu ainda tinha ego! Mas também ainda tinha a melhor maneira de lidar com ele: o humor.
Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim