Não sei quanto tempo passou. Quanto tempo estive no chão. Levantei-me. A espuma da loiça já tinha desaparecido. A noite tinha chegado e, no ar, havia algo denso.
Acabei de lavar os pratos que olhavam para mim e fui montar o tabuleiro de Go na mesinha da sala, onde eu e a Morte nos costumamos sentar.
O tempo foi passando, mas a Morte não aparecia. Tive um pressentimento estranho. Algo que não fazia sentido, visto que a Morte era a morte, não podia morrer... Acho eu!
Farto de esperar, arrumei tudo e fui até ao alpendre, só para ver se não teria deixado nada lá fora.
- Hei! Tu aí!
Assustado, olhei à minha volta e eis que perante mim estava uma rua, da tal cidade, e um homem com ar de quem bebeu mais do que a sua conta.
- Sim, tu aí!
- Eu?
- Claro! Estou bêbedo, mas ainda vejo!
- ...
- Por acaso, não tens aí uns trocos, não?
- Trocos?
- Estás a gozar, meu?
No momento em que diz isto, o tal homem saca de uma faca e aponta-a a mim.
- Dás, ou não, cabrão? Queres ver os teus intestinos, é?
As faces do homem, de repente, ficaram vermelhas e os seus olhos iguais a tantos guerreiros com que lutei numa das minhas outras vidas.
Reflectia eu sobre a situação, quando ele se atira sobre mim, com a faca apontada. Num instante, a Morte afasta-o e adormece-o.
- Estás doido? Porque não te defendeste?
- Desculpa! Fiquei congelado. Não me conseguia mexer.
A Morte ficou a olhar para mim incrédula. Abanou a cabeça, pôs o braço à volta dos meus ombros e arrastou-me.
Vagueámos um pouco pelas ruas daquela cidade. Não se via ninguém. Um carro de quando em vez.
- Estamos perdidos, não estamos?
- Parece que sim. Não reconheço nada...
- O mais estranho é que nem vimos a casa da tal criança.
- Verdade! Porque vim aqui parar?
Mal disse isso, vi o pai da criança a passar. Estava com medo. Sentia-o. Olhava de um lado para o outro, mas caminhava resoluto. Seguimo-lo.
Passámos por um edifício com baloiços cá fora. Um sítio fechado e com luzes acesas, onde vários homens gritavam para uma caixa com figurinhas lá dentro. Um outro local, onde um vidro protegia roupas de criança. Um mundo de coisas estranhas...
Mais à frente estava uma rotunda e a rua onde aquele homem me apareceu. O pai da criança passa pelo mesmo espaço que eu tinha ocupado. O tal homem, deitado no chão, onde a Morte o tinha deixado.
- Está morto?
- Não, só o adormeci. Ainda não chegou a sua vez.
O pai da criança estugou o passo. Tivemos de correr para o apanhar. Mais à frente, para e abre a porta do prédio. Olha uma última vez à volta e fecha.
Acompanhamo-lo pelas escadas. Quando ele chega à porta, respira fundo e entra em casa com um grande sorriso. A criança vai a correr abraçá-lo. A mulher também se aproxima e beija-o.
- Estás bem?
- Sim, acho que sim...
Uma sensação estranha enche o meu coração. Tento explicar à Morte, mas parece que as palavras não saem...
- Estás a sentir Amor.
- Amor?
- Sim. Não te lembras?
- Não...
Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim