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31 maio 2021

O pai

Não sei quanto tempo passou. Quanto tempo estive no chão. Levantei-me. A espuma da loiça já tinha desaparecido. A noite tinha chegado e, no ar, havia algo denso.

Acabei de lavar os pratos que olhavam para mim e fui montar o tabuleiro de Go na mesinha da sala, onde eu e a Morte nos costumamos sentar.

O tempo foi passando, mas a Morte não aparecia. Tive um pressentimento estranho. Algo que não fazia sentido, visto que a Morte era a morte, não podia morrer... Acho eu!

Farto de esperar, arrumei tudo e fui até ao alpendre, só para ver se não teria deixado nada lá fora.

- Hei! Tu aí!

Assustado, olhei à minha volta e eis que perante mim estava uma rua, da tal cidade, e um homem com ar de quem bebeu mais do que a sua conta.

- Sim, tu aí!

- Eu?

- Claro! Estou bêbedo, mas ainda vejo!

- ...

- Por acaso, não tens aí uns trocos, não?

- Trocos?

- Estás a gozar, meu?

No momento em que diz isto, o tal homem saca de uma faca e aponta-a a mim.

- Dás, ou não, cabrão? Queres ver os teus intestinos, é?

As faces do homem, de repente, ficaram vermelhas e os seus olhos iguais a tantos guerreiros com que lutei numa das minhas outras vidas.

Reflectia eu sobre a situação, quando ele se atira sobre mim, com a faca apontada. Num instante, a Morte afasta-o e adormece-o.

- Estás doido? Porque não te defendeste?

- Desculpa! Fiquei congelado. Não me conseguia mexer.

A Morte ficou a olhar para mim incrédula. Abanou a cabeça, pôs o braço à volta dos meus ombros e arrastou-me.

Vagueámos um pouco pelas ruas daquela cidade. Não se via ninguém. Um carro de quando em vez.

- Estamos perdidos, não estamos?

- Parece que sim. Não reconheço nada...

- O mais estranho é que nem vimos a casa da tal criança.

- Verdade! Porque vim aqui parar?

Mal disse isso, vi o pai da criança a passar. Estava com medo. Sentia-o. Olhava de um lado para o outro, mas caminhava resoluto. Seguimo-lo.

Passámos por um edifício com baloiços cá fora. Um sítio fechado e com luzes acesas, onde vários homens gritavam para uma caixa com figurinhas lá dentro. Um outro local, onde um vidro protegia roupas de criança. Um mundo de coisas estranhas...

Mais à frente estava uma rotunda e a rua onde aquele homem me apareceu. O pai da criança passa pelo mesmo espaço que eu tinha ocupado. O tal homem, deitado no chão, onde a Morte o tinha deixado.

- Está morto?

- Não, só o adormeci. Ainda não chegou a sua vez.

O pai da criança estugou o passo. Tivemos de correr para o apanhar. Mais à frente, para e abre a porta do prédio. Olha uma última vez à volta e fecha.

Acompanhamo-lo pelas escadas. Quando ele chega à porta, respira fundo e entra em casa com um grande sorriso. A criança vai a correr abraçá-lo. A mulher também se aproxima e beija-o.

- Estás bem?

- Sim, acho que sim...

Uma sensação estranha enche o meu coração. Tento explicar à Morte, mas parece que as palavras não saem...

- Estás a sentir Amor.

- Amor?

- Sim. Não te lembras?

- Não...



Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim