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26 maio 2021

Minha amiga Morte

Pela janela que está à frente do lava loiças, vejo a minha memória a construir-se. A chuva desaparece e dá lugar ao sol. O pequeno bosque que fiz nascer, dá lugar a pasto rasteiro, a terra seca e argilosa. O charco, a mais um pedaço de terra quase morto.

Ao fundo, na estrada vejo-me. Mais novo, com fogo no olhar. Um sonho estava prestes a realizar-se.

Olho para uma vida que já está longe desta. Tão longe que, por vezes, sinto que nunca aconteceu. Que poderia muito bem ter sido uma série que vi na televisão.

Baixo a cabeça. Continuo a lavar a loiça que deixei acumular de ontem à noite. A interação das minhas mãos com a água, em movimentos repetidos, tranquiliza-me. Respiro fundo e tento limpar a mente. Devolvê-la ao zero. Só assim, conseguirei ouvir-me.

A chuva continua a cair. De quando em vez, um trovão faz-se ouvir. Sento-me na cadeira de baloiço junto à janela. Pego num velho livro que me tem acompanhado nestes últimos anos. Já o sei de cor, mas lê-lo é como falar com um velho amigo.

Olho para as sombras que a chuva desenha. Penso nesta vida e nas muitas outras que tive. Quase que poderia dizer que morri e que estou no além, não fora a visita diária da Morte. Ela lembra-me sempre que ainda não chegou a minha vez, que ainda tenho que cumprir a minha missão aqui.

"Que missão?", pergunto eu, todos os dias... Ela ri-se e faz-me desistir de mais uma partida de Go.

- Porque é que tens tanta pressa?

- Não é pressa... É...

- Ansiedade?

- Não. Propósito. Não vejo um propósito nesta espera.

- Meu caro amigo, já devias saber que o único propósito da vida é viver...

- Sim, eu compreendo o que dizes. Mas, ainda não senti o que dizes.

- Natural. Sempre viveste pela razão, pela lógica. Sempre tiveste um propósito para cada ação.

- Mas só assim se pode viver.

- É?

A pergunta ficou a pairar no ar, enquanto a Morte partia. Até agora a sinto, neste ar mais pesado, devido à tempestade e à eletricidade estática.

Abro o livro. Finjo que o leio, pois já o sei de cor. Fecho os olhos e adormeço no lento baloiçar da cadeira.



Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim