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21 maio 2021

Estou velho


Acordei com uma sensação estranha: uma necessidade de regressar à simplicidade, à pureza de outros tempos.

Levanto-me. Abro as persianas. Lá fora, os primeiros raios da aurora cumprimentam os caniços que se destacam do meio do charco.

Vou à casa de banho. Decido tomar banho. Há algo em mim que sinto precisar de limpar. À medida que a água escorre, peço-lhe caridosamente para me lavar de todas as impurezas. Esfrego-me com um sabão azul e branco, utilizado para lavar a roupa. O cheiro relaxa-me...

Terminada a ablução, limpo-me perante o espelho. Nele, vejo refletido um velho corpo, uma velha alma, uma velha história. Respiro fundo. Olho-lhe nos olhos. Desculpo-me por todo o mal que lhe faço, por todo o mal que sinto. Peço-lhe perdão por ainda não ter conseguido limpá-lo do peso do passado e do futuro. Agradeço-lhe por expor as suas fraquezas. Digo-lhe que o amo, porque só o amor transforma realmente.

Visto-me. Sigo para a cozinha, onde arranjo um chá e umas bolachas com mel. Pego no meu leve repasto e sigo para o alpendre. Ali sento-me, a olhar para a luz que agora invade o vale e que acaricia o pequeno bosque que plantei.

É com o som dos pássaros e dos insetos que como. Que observo o mundo que crio todos os dias em mim. O mundo pelo qual sou responsável. O mundo que reflete o meu interior.

O falcão-peregrino, hoje, veio mais cedo. Pousa sobre um dos pinheiros que cresce na encosta. Mais abaixo, um casal de corvos procura o alimento ideal para a sua cria. Por detrás de um arbusto, surge um saca-rabos, que, distraído, não percebe a minha presença.

Termino o meu pequeno-almoço. Reclino-me no banco. Fecho os olhos. Sinto o tempo a passar.

Uma brisa fria traz o cheiro a chuva. Ela já ontem ameaçava, mas creio que chegou a hora. Levanto-me. As costas parecem presas. Tenho de as empurrar com as mãos, à medida que grito um "AH!".

As aves levantam voo. O saca-rabos foge sem direção. Os barulhos calam-se. A primeira gota cai.

Lentamente, vou para dentro com a loiça. A chuva cai com mais força. Lavo a loiça. Oiço um trovão. Paro o que faço. Uma memória bate à porta da minha mente.


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Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim