Vón olha à sua volta.
Os lobos que sobreviveram, fogem em retirada, feridos...
Amma continua alerta, com o pelo eriçado e os dentes de fora. Atrás dela, contra uma parede alta, uma pele estendida, cordas e paus. O pai de Vón deve-se ter abrigado ali, quando a neve começou a cair.
- Fadir!
- ...
O pai mexe-se, mas nada diz... Só um esgar de dor. Vón observa a extensão das feridas. Olha para Amma que, entretanto, se aproximara e começara a lamber o seu pai.
Num repente, Vón levanta-se, saca da faca de caça do pai e dirige-se ao acampamento improvisado.
Com os paus, as cordas e a pele, faz uma estrutura parecida a uma maca. Leva-a até ao pé do pai e empurra-o, com a ajuda da Amma, para cima da pele.
Num esgar de dor, Vón ergue uma das pontas da maca e começa a arrastá-la montanha a baixo, em direção da aldeia.
Amma acompanha-a, mantendo-se sempre em estado de alerta.
À volta do trio, sente-se um silêncio pesado, só quebrado pelos grunhidos de Vón... A dor, o cansaço, começam a querer conquistar a vontade da adolescente.
- Aconteça o que acontecer!
*
- Vón!
- Diz, fadir!
- Aconteça o que acontecer!
- Que dizes?
- Aconteça o que acontecer!
- Sim... O que tem?
- Esta é a frase que o teu avô me ensinou, quando nos vimos perdidos na floresta, depois de um nevão. Não sabíamos onde estávamos. Os pontos de referência tinham desaparecido com a neve e o vento.
- ...
- As forças faltavam-nos. A esperança perdia-se. A única coisa que podíamos fazer era manter-nos a andar. Procurar um abrigo.
- ...
- Eu queria desistir. Era pequeno. Fraco... E deixei que essas palavras me definissem.
- ...
- Então, o avô, olhou-me nos olhos e disse: Aconteça o que acontecer, nós vamos sair daqui vivos!
- ...
- Essas palavras tocaram o meu coração e repeti-as a cada passo que dava. "Aconteça o que acontecer! Aconteça o que acontecer!"
*
A travessia faz-se de uma forma lenta, pelo caminho escuro e frio, que Vón tão bem conhecia.
A cada passo repetia o mantra que tinha aprendido com o pai. A cada passo falava com a floresta, para encontrar o seu caminho. A cada passo, Amma puxava-a...
O suor e o sangue congelavam juntos sobre a pele. As lágrimas eram pérolas e o ranho, um rio gelado. Mas Vón, mantinha-se a andar, a puxar o pai. Ele tinha de saber se o bebé estava vivo ou não.
Os segundos arrastavam-se, até que uma porta surgiu no meio da escuridão. Vón, sem saber como, tinha chegado a casa.
Lá de dentro, ouvia-se o choro de um bebé, risos e gritos de alegria...
Amma, lambeu-lhe as mãos e o pai. Depois, regressou à floresta.
As mãos doridas de Vón, largam a maca. Batem à porta com urgência.
- CHEGÁMOS!
Rui M. Guerreiro