Eu e a Morte sentámo-nos. O chá, nas mãos frias, ajudava-me a aquecer. A Morte ia bebericando enquanto olhava para mim.
- Quem é aquela criança?
- Não sei.
- Já tinhas visto cidades daquele género?
- Não! E tu?
- Sim, confesso que sim. Mas já sabes que eu atravesso as dimensões e o tempo.
- Aquela criança sou eu?
A Morte pousou a caneca na mesa que nos separava. Levantou-se.
- Sabes que não posso responder a isso, não sabes?
Ao dizer isto, desapareceu, deixando-me ali... Só...
Na manhã seguinte, a solidão continuava a acompanhar-me. Para mim, estar sozinho era normal, mas até ali nunca tinha sentido o que é realmente estar só.
Sentia-me deslocado, desamparado, com um vazio no coração... As lágrimas começam a escorrer dos meus olhos. Limpo-as com a minha mão e vejo um pequeno arco-íris nos meus dedos.
Os meus joelhos dobram-se com o peso desta água que flui de mim. O meu corpo, derrotado, desfaz-se em líquido. Choro por todos os séculos em que estive seco.
O meu canal desbloqueia-se. As memórias seguem o meu sal. As mortes que tive, que provoquei. A tempestade que fui, a que sofri. A dor que infligi, que recebi. O Amor...
Tudo foi levado por aquele momento. Tudo explodiu em mim. O meu corpo fragmentou-se em pedaços, em vidas que vivi e que viverei.
Quando a Morte chegou, à noite, para a nossa tradicional partida de Go, viu os meus fragmentos. Recolheu-os um a um e voltou a montá-los...
Rui M. Guerreiro, o guerreiro ruim