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30 novembro 2019

O desafio

A parteira e a filha preparavam com urgência todos os pormenores e materiais que precisavam para ajudar a mãe de Vón dar à luz o seu terceiro bebé.

Vón sentia-se à parte. Num mundo paralelo. Simplesmente observava o que a rodeava.

De um lado da casa, panelões ferviam água, procuravam-se panos, esterilizavam-se tesouras no fogo e cobriam-nas com um pano fino e branco.

Do outro, estava a mãe com dores intermitentes. Focada em si própria. No seu passado. Na sua esperança.

- Sai da frente! Esta miúda é mesmo inútil. Nem consegue evitar de atrapalhar!
- Oh mãe! Não sejas tão dura com ela... Depois do que ela viu!

*

Vordur tinha de ser um rapaz. Os pais tinham cumprido todos os rituais necessários para que o fosse.

Vón fizera nove anos e já vira a mãe abortar duas vezes antes. Mas desta vez seria diferente.

O pai nesse verão tinha conseguido caçar mais. A mãe e ela tinham salgado e fumado a carne, para durar para o inverno. Até a horta tinha sido mais produtiva.

A gravidez tinha corrido bem, sem sobressaltos. A mãe e o pai estavam felizes e confiantes. Mesmo o xamã da floresta tinha consultado as runas e o presságio parecia otimista.

Ninguém esperava o que viria a acontecer. A parteira tinha conseguido preparar tudo a tempo com a ajuda de Vón e do pai.

Mas... no momento do nascimento, Vón percebeu que nem as runas conseguem preencher as linhas que as deusas e deuses escrevem para nós.

A mãe gritava. O pai segurava-lhe a mão com confiança e um sorriso. A parteira coordenava o esforço da mãe.

Vón estava imóvel, a assistir a tudo. Sentia o mundo abrandar, à medida que as coisas aconteciam.

Os movimentos eram mais lentos. As expressões mudavam a um ritmo mais brando. O fumo  adensava-se na casa. Pingos escorriam pelas superfícies mais vidradas de algumas cerâmicas. O cheiro do parto preenchia o espaço.

De repente, sentiu o coração saltar e a iniciar um ritmo incoerente com o silêncio que a rodeava.

Havia um bebé, mas não havia um choro. Um grito, um riso, um cair de qualquer coisa. Só se ouvia a batida do coração de Vón.

A mãe e o pai estavam brancos e de boca aberta. A parteira, de cara fechada, segurava Vordur, um bebé com tons azulados e um cordão umbilical a rodear o seu pequeno pescoço.

Vón não tem mais nenhuma memória desse dia. Lembra-se de estar na rua a chorar e a vomitar, quando o pai saiu com Vordur nos braços, enrolado numa pele curtida.

Mas esta memória poderia ser desse dia, ou do a seguir. Vón não conseguia distinguir.

*

Vón cai de repente no chão, empurrada pela parteira.

- Inútil!

- CHEGA!

O grito encheu todos os espaços vazios da casa. Expandiu-se a partir das cordas vocais de Vón e chegou até à floresta. Uma velha loba solitária, que se tinha enroscado à beira da aldeia, abriu os olhos e ergueu-se do seu torpor.

A parteira e a filha estavam petrificadas. A mãe de Vón abrira os olhos e fixava-os na adolescente.

- Mordir! Vou buscar o fadir! Ele tem de estar aqui.
- Mas a miúda está parva?
- Mãe!
- Só pode! Como é que esta inútil vai atravessar a floresta, encontrar o pai, à noite e a nevar?

Vón veste as bragas quentes. Calça as botas de pele. Pega no casaco de pele de lobo da mãe. Pega numa tocha e acende-a na lareira. Abre a porta e olha para trás.

- O meu fadir tem o direito de se despedir ou de agradecer a vida.

Rui M. Guerreiro