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29 abril 2019

Separados



- O teu sorriso!
- Que tem?
- É luz, no meio desta escuridão.
- ...

*

Levantei-me. Atrás de mim, o guerreiro.

Olhámos para a enorme fortaleza que se tinha levantado.

A chuva continuava a cair, desinteressada do que tinha acontecido. A água continuava a escorrer e a lavar o sangue do chão. Havia corpos que se moviam, com a força das águas que escorriam monte abaixo.

Avançámos. Quando chegámos ao portão, este abriu-se. Por detrás viam-se duas portas. Olhámos um para o outro, incrédulos.

Mas não tivemos muito tempo para manter essa surpresa. Num instante, um vento forte surgiu do sopé do monte e empurrou-nos. Entrámos cada um numa porta.

*

Assim que entrei a porta fechou-se atrás de mim. Estava escuro. O silêncio pesava. Nem a chuva, nem o vento se ouvia.

Só sentia uma corrente de ar.

Decidi segui-la, mesmo que aos apalpões. Ficar não resolvia nada.

Inspirei fundo e lembrei-me dos meus treinos. Atei um lenço aos meus olhos e segui cega por um corredor que me parecia longo.

**

Caí desamparado numa ponte estreita de corda. Por pouco não caí.

Lá em baixo via lava a escorrer. Sentia o calor a subir pelo meu corpo.

Segurei-me bem à ponte e prossegui, passo a passo. No entanto, a cada passo, a ponte descia mais um pouco. Aproximava-se do fogo corrente.

**

O silêncio queimava o corpo. Sentia a corroer cada centímetro da minha pele. Pesava nos meus passos, na minha mente.

**

A lava salpicava as cordas. Enfraquecia-as cada vez mais. Tinha que tomar uma decisão.

**

Não estava sozinha. O silêncio era falso. Mas sabia que a escuridão se mantinha. Desembainhei as sai.

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Respirei o mais fundo possível. O ar também queimava. E comecei a correr.

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Bati as sai. Não havia eco. Coloquei-me em posição e comecei a desferir golpes de forma circular.

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Quanto mais corria, mais as cordas se aproximavam. Mais os salpicos enfraqueciam o cordame. Mas não podia parar. Tinha de sobreviver. Tinha de encontrar a mulher dos mil rostos.

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As sai espetavam e rasgavam sons de dor. A cada metro que andava, ouvia gritos e sons surdos de corpos a baterem o chão.

**

A ponte começou a arder. Ameaçava quebrar-se a qualquer momento. Acelerei e, a poucos metros do fim, saltei.

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Os sons pararam e um vento frio embateu no meu corpo. Retirei a venda. Atrás de mim...

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Caí numa saliência da escarpa. A meu lado, a ponte em fogo embatia na rocha.

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Nada. Só uma grande muralha. À minha frente um enorme descampado cheio de sepulturas. Em cada uma estava inscrito um nome. O nome de cada uma das minhas vítimas.

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Afastei-me da ponte o máximo possível para não me queimar. Olhei para cima. Ainda faltava uns bons metros.

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Avancei pelo cemitério. Devagar. Não queria acordar os mortos.

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Assim que me aproximei da parede. Procurei saliências por onde poderia escalar.

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A velha não me iria facilitar a vida. Sabia que a qualquer momento os mortos se ergueriam.

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Quando me aproximei da parede vi que não eram rochas que a compunham. Eram ossadas.

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Pensei no guerreiro... Onde estaria ele?

- Encontramo-nos no fim...

A voz dele tinha-me invadido. Cerrei as mãos à volta das sai. A batalha com o passado iria começar.

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Pensei na mulher... Onde estaria ela?

- Encontramo-nos no fim...

Disse para mim, enquanto me lembrava do sorriso dela. A batalha com o passado iria começar.


Rui M. Guerreiro