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06 abril 2019

Ingénuo


- Ela está cá há séculos. Como pensas derrotá-la?
- Com aquilo que ela odeia...
- ...
- Verás, quando chegar a altura...

*

Escolher as armas foi fácil. Carregá-las também. O problema foi deixar a caverna. Queimá-la, como fiz com a cabana.

Este novo caminho não tem retorno. É uma missão suicida.

O guerreiro sabia. Mas, mesmo assim, vai comigo. Sem hesitações. Poderia dizer que era por vingança, mas ele não entende esse conceito.

É estranho, um ronin, como ele, que matou tanta gente, no entanto... não tem um fundo mau. Não procura a vingança. Chora enquanto dorme pelas mortes que provocou.

Uma vez fui dar com ele a repetir o nome de todos o que matou, enquanto os honrava, ao nascer do sol.

Como é que ele não se habituou à matança? Depois de todos estes anos...

*

Enquanto víamos o fumo a sair da caverna junto à cascata, por onde atirara o guerreiro, ele pegou na minha mão. Apertou-a. Olhou para mim. Sorriu. Beijou-me a testa e começou a andar...

Vi-o a afastar. Como poderia ter dúvidas do que sentia... Do que ele sentia?

*

- A morte acompanha-me. Anda a meu lado.
- O que dizes guerreiro?
- A morte é minha amiga. Foi ela quem me libertou.
- ...
- É ela quem me diz que hoje ainda não me vem buscar.

*

Este homem confunde-me... Baralha-me, com a sua simplicidade e ingenuidade. Como pode ter sido ele um assassino, uma tempestade temida por todos os territórios?

*

- A katana clamava por sangue. Dominava os meus pensamentos, desejos...
- A velha nunca te treinou?
- Não! Simplesmente deu-me a katana.
- Vivi tantos anos com ela. Treinei tanto com ela...
- E a mim... Ela deu uma maldição!
- Ambos fomos feitos reféns...

*

Os dias de caminho foram passando. Admiravelmente calmos. Sem ataques! Que estaria a velha a engendrar?

Esta ausência de tudo, preocupava-me. Tornava-me ansiosa. Não conseguia dormir. Falar. Amar...

Queria tanto tocar-lhe. Sentir a sua pele. Os lábios. As mãos a percorrerem-me as pernas...

Mas afastava-o. Fechava-me mais e mais...

Até que ele começou a andar sozinho com uma sombra de mim.

*

- A velha não precisa de um exército para nos atacar.
- Que dizes?
- Basta estar na nossa cabeça para nos dividir!
- ...

*

As palavras dele acertaram-me no coração. Elevaram-me do chão e deixaram-me cair... desamparada...

Ele tinha razão. A velha crescia na minha cabeça e deixava um rasto de morte no meu cérebro.

*

- Amo-te!
- ...

*

Sorriu e adormeceu... Eu...

Não!

Rui M. Guerreiro