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04 março 2019

Uma nova religião


A distância. O tempo que passa... tudo muda, tudo acentua...

*

Há uma mão que segura a minha. Que me leva por esta vida. Ainda não a conheço.

Sei que pertence à mulher dos mil rostos, mas ainda não sei quem ela é. A cara por detrás das caras. Os olhos que espelham a alma daquela mulher. Daquela sereia.

Todos os dias a espero. Tento encontrá-la. Sei que, apesar de não a ver, ela está ali. Deixa-me pequenas pistas. Para que eu persista.

Tantas vezes me apeteceu partir. Simplesmente partir. Queimar a cabana e ir.

Mas algo mudou em mim. Algo me faz esperar.

Sei que, desta vez, a espera será a última. Sei que, desta vez, o meu coração irá encontrar a paz e a reparação que precisa.

*

Todas as batalhas que travei trouxeram-me aqui, a este momento, em que olho a baía. Sinto a brisa marítima. Vejo as ondas no seu ritmo constante.

Ali sentado, vejo um destino traçado por algo divino e pelo meu livre arbítrio. Uma mistura que confunde. Um misto de desígnios que se implantou em mim. Resultado de milhares de anos de procriação humana. De várias reencarnações. De religiões criadas, desenhadas, mortas e ressuscitadas.

À falta de uma crença que me satisfaça, que me diga algo, crio uma nova. Uma minha. Só minha.

Pego no que considero belo. Naquilo que me eleva como pessoa e moldo uma religião pessoal. Invento um novo panteão de deuses. Glorifico a vida que existe à minha volta.

Olho para as plantas, animais, insetos e todos os grãos que constituem esta praia. Vejo que são todos parte de mim. Vejo que a um nível atómico, não passamos de poeira de estrelas já mortas.

Essa união cria-me um sentimento de êxtase e de união com algo divino. Com algo que também criei.

Olho para a baía e este novo mundo. Vejo a sua unicidade. O seu ténue equilíbrio e a sua indiferença a qualquer ilusão ou expectativa que eu crie.

Percebo agora que a injustiça que senti em tempos só existiu pelas crenças que eu continha em mim. A Vida não é injusta. É indiferente a mim. Assim como o sou a uma formiga que passa a meu lado. A morte dela, ou de alguma outra da colónia, é-me indiferente. No entanto, ela continuará a viver e eu também.

Esta revelação poderia alterar-me. Poderia até modificar-me. Mas o que senti ficou naquele momento. Porque além da indiferença da Vida, também tenho de contar com a minha.

Volto à dor e culpa do passado. É o que conheço. É o que me sustenta...

Sinto-me miserável e agarro-me à esperança, apesar de ter conhecido a verdade. De ter criado a minha verdade.

É tão mais fácil subjugar-me ao medo... ao que conheço. Troco a minha verdade, por algo fabricado por outrem... por mim, numa altura em que não tinha chão.

*

Levanto-me. Cheio de contradições. De medo. Caminho de volta à cabana, tentando esquecer todo aquele turbilhão.

Porém, quando chego, vejo que há algo diferente. Reparo numa ou outra cor que não tinha visto antes. Há algo inscrito no topo da porta... uma frase. Numa língua falada por um povo antigo que há muito desaparecera. Esquecido pelo Tempo, pela Humanidade.

A conjunção daqueles caracteres não fazia sentido para mim, desconhecia-os... Mas dentro da minha alma tudo encaixava. Havia um apelo à memória de outras vidas... Havia um apelo a mim!

Rui M. Guerreiro