A linguagem dos sonhos... é a linguagem da vida que se esconde em nós...
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Aqueles caracteres ficaram gravados em mim. Não os compreendo. Não os percebo. Mas eles queimaram a minha memória. Ficaram enquanto me preparava para deitar.
Adormeci febril nessa noite. Tremia. Suava. Sonhei... Sonhei... Enquanto expurgava a febre do medo. Da confusão.
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A aldeia ardia. Os samurais do Xógum regozijavam-se. Festejavam. Bebiam.
Mulheres eram violadas. Crianças presas. Homens mortos, com a crueldade dos vencedores.
Tudo acontecia ao mesmo tempo. Simultaneamente. Fogo. Sangue. Álcool. Gritos. Gargalhadas. Lágrimas.
A pequena aldeia de pescadores parecia ter sido levada por um tornado de violência, onde o mais cruel do ser humano se tinha revelado.
Via-me ali no meio. A gritar. A tentar impedir o que se passava. Até que três dos meus companheiros de armas pegaram em mim e prenderam-me a uma árvore onde podia assistir a tudo.
A noite foi longa. A madrugada cheirava a cinzas e a carne queimada. Não se viam samurais. Só cadáveres, carbonizados num grito lançado, mas não ouvido.
As lágrimas que me escorriam, a impotência que sentia...
O que mais impressionava era o silêncio. Até o mais corajoso dos pássaros recusava-se aproximar daquele cenário.
Aquela desolação. Era a do meu coração.
Uma barcaça cheia de samurais aproximou-se do antigo porto. Saíram. Todos cheios de cerimónia. Armaduras limpas. Ar enaltecido. No meio deles, o general.
A insurgência tinha terminado. Tinha sido dizimado o último foco de resistência aos novos impostos do xogunato.
O general caminhou até mim. Olhou do seu alto. Cuspiu na minha cara. E deu ordens para que me batessem e levassem.
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Acordei todo dorido numa masmorra. Despido. No meio do chão frio de pedra.
Não sei quanto tempo ali estive. Não recebia visitas. Não tinha janelas. Nada me segurava ao tempo humano.
Um dia foram buscar-me. Atiraram-me uns baldes de água. Vestiram-me um velho kimono. Arrastaram-me até a uma sala de audiência.
O general olhou para mim, com ar de desprezo e condenou-me à morte. Não tinha direito a seppuku, por ter recusado executar as ordens do Xógum.
Olhei nos olhos do general e ele soube.
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Os dias passaram e eu acabei por não ser morto. O Xógum tinha intervindo e impediu a minha execução. Uma vida, por uma vida. Ele lembrava-se.
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Acordei tantas vezes, quantas repeti o mesmo sonho. A febre mantinha-se no meu corpo. Os caracteres na minha memória. O olhar daquele general nos meus olhos, enquanto vi a vida a escorrer-lhe.
A minha katana, sedenta de sangue, provou o líquido da vingança. Mas também conheceu, a vida de um proscrito, perseguido pelas forças do Xógum.
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Levantei-me. A chuva tinha voltado. Fria. Olhei para o caminho que trilhava todos os dias e... deixei-me levar por ele.