O vento arrasta as memórias que guardei. Arrasta-me para o futuro...
*
A baía aguardava-me com um vento forte... de tempestade.
As árvores e os bambus dobravam-se perante a força. O mar encrespava-se, mesmo através da proteção da baía.
As águas refletiam e confundiam-se com o cinzento do céu.
Tudo abanava à minha volta. Abri os braços. Sabia que era altura de o enfrentar... O maior monstro que vivia em mim... a culpa!
*
A tempestade anunciava-o.
Peguei na minha bokuto, esculpida de acordo com os preceitos da artesã que me acolheu no seu coração. Criada com gestos intencionais, feita a partir das minhas escolhas, durante as longas manhãs. Feita a pensar neste momento.
Eu sabia que mais cedo ou mais tarde este monstro iria aparecer. Que o iria enfrentar, num dia como este, de tempestade.
Apesar da febre que sentia, eu estava preparado.
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O vento deixou de soprar. As ondas pararam. A chuva deixou de cair. O silêncio impôs-se. Coloquei-me em posição.
O olho da tempestade tinha chegado. Com ele... a culpa!
O monstro saltou do centro da baía, com a espada preparada para desferir o golpe.
A culpa era enorme. Duas palmeiras não a conseguiam medir.
Mas eu tinha a minha velocidade e agilidade.
Desviei-me, mesmo a tempo de ver a enorme espada de lâmina grossa, como os piratas utilizam, a cair na areia. Aquela espada não foi feita para cortar, foi feita para dilacerar.
Saltei para cima da espada. Corri por ela acima.
O monstro levantou o braço.
Saltei e espetei a minha bokuto no olho direito, uma das poucas aberturas da sua armadura.
O monstro grunhiu com a dor e cambaleou.
Desequilibrei-me e comecei a cair...
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O vento tinha voltado. A chuva mais forte do que antes. O mar encrespava-se cada vez mais.
E eu caía... em direção àquelas ondas.
A culpa tentava encontrar o equilíbrio e as águas movimentavam-se com as suas tentativas.
Quando caí, bati no fundo da baía. Não sabia onde era o topo.
Perdi a noção de onde estava.
Felizmente, a bokuto continuava comigo.
Parei de lutar com a água. Entreguei-me ao seu movimento.
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Fui dar à costa. O monstro já se tinha equilibrado e continuava à minha procura.
Preparei-me para mais uma investida.
A chuva pesava-me. O vento arrefecia-me. Mas eu tinha de continuar. A culpa não me poderia vencer mais uma vez... como sempre me fizera.
Hoje iria ficar firme. Defender-me, até à última gota do meu sangue.
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O monstro virou-se para mim. O sangue do olho misturava-se com a chuva e escorria em cascatas pela armadura.
Media-me com o que restava.
Levantou o pé e deixou-o cair sobre mim.
Saltei a tempo de o evitar.
Corri até uma árvore e subi.
A culpa levantava o pé e procurava-me na cratera que tinha aberto. Baixou-se.
Nesse momento, saltei do topo da árvore até à armadura. Subi a correr até ao outro olho e espetei a minha bokuto.
Mais uma vez, o monstro ergueu-se com a dor. E eu, mais uma vez, caí desamparado nas águas revoltas.
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Cega, a culpa atirava a espada contra tudo o que se mexia e não mexia. Batia com os pés.
Eu vogava ao sabor das ondas. A tentar que alguma me levasse para terra.
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Quando cheguei à praia. Observei o monstro. Ele continuava no seu caos. Na sua dor.
Pela primeira vez tinha atingido a culpa. Pela primeira vez tinha-a feito sangrar.
Ao olhar para ela vi que se lhe tirarmos os olhos. Se lhe tirarmos os filtros, ela perde-se. Não nos consegue afetar.
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Poderia ter-lhe dado algum golpe de misericórdia. Mas sabia que ao fazê-lo poderia morrer. A culpa não morre solteira, dizem. E aqui, arriscava-me a morrer nos seus braços.
Deixei-a consumir-se na sua dor e partir pela entrada da baía.
*
O vento amainou. A chuva parou. O sol começou a espreitar por entre as nuvens. Um arco-íris formou-se.
À minha volta, árvores, bambus, deitavam-se partidos sobre o chão. As escarpas tinham desmoronado. A baía tinha-se transformado.
O meu corpo doía. Sangrava. O cansaço apossava-se de mim.
Caí na areia. Deixei o sol aquecer-me...
Ao fundo, numa das falésias, onde o arco-íris tocava, estava a sombra de uma mulher que olhava para mim.
Levantei a mão...