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09 março 2019

O renascer


A escuridão e a luz. Medo e Amor. Morte e vida... Binómios de uma só realidade.

*

A fronteira entre sonho e realidade começa a esmorecer. Caminho entre a escuridão e a luz. Equilibro-me entre aquela ténue linha que as separa. Reconheço a presença de uma na outra... Reconheço a minha queda. O meu declínio.

Apesar de ter afastado a culpa, ela ganhou. Ganha sempre. Mesmo quando perde. Ela engana os meus anticorpos, disfarça-se no meu ADN. Usa-o para se espalhar. E, quando menos espero, ela irrompe pelos meus sonhos e desfaz toda a esperança.

*

Durante muito tempo, mantive-me deitado. Com suores frios. Calor. Arrepios. Fome. Dores de cabeça. Dores no corpo. Pesadelos. Alucinações.

Os fantasmas dos que matei apareciam e sentavam-se à minha cabeceira. Falavam comigo. Contavam e recontavam as nossas batalhas.

O sangue corria pelas minhas veias, como tinha escorrido pelas minhas mãos.

A noite era dia, o dia era noite. Tudo se misturava à minha volta. Tudo rodava em mim.

O sangue com o qual a minha katana se tinha alimentado escorria pelo teto e caía, gota a gota, sobre mim.

Os olhos dos que testemunharam os meus pecados voavam sobre mim. Os dedos acusadores apontavam a minha alma.

O fogo do submundo consumia o chão à minha volta. A lava dos vulcões queimava a minha pele como castigo.

As paredes da cabana ruíam e transformavam-se em placas de vazio. Onde nada se via. Onde nada existia.

O meu corpo não sentia. Ou sentia tudo.

A minha mente já não sabia o que raciocinar. Pensar. Não pensava.

As emoções tinham tomado conta de mim, junto com as alucinações, e andavam à solta.

Eu caía num poço e não encontrava o fundo.

*

Um dia. Tudo parou.

Lá fora o sol aparecia. Os pássaros cantavam. As cigarras acompanhavam. As moscas zumbiam junto ao teto. Uma libelinha pairava junto à janela.

A cama estava húmida do suor. O chão com vómito. O balde com todos os meus excrementos.

Lá fora havia vida. Cá dentro havia decadência. Morte.

Levantei-me.

Peguei no balde e fui despejar na latrina.

Fui buscar água e lavei o chão do quarto.

Peguei nos lençóis e lavei-os.

Arejei o colchão.

Despi as minhas roupas e também as lavei.

Peguei no espelho, numa tesoura e numa faca que já tinha afiado.

Fui até ao rio. Lavei-me. Cortei e fiz a barba. Prendi o cabelo. Vesti um kimono lavado. Voltei à cabana e guardei tudo.

Comi. Devagar... bem devagar...

Ergui-me e saí.

*

A baía lá estava. Apesar de transformada pelo monstro, mantinha a sua beleza.

Olhei para o céu. Senti o sol. Respirei fundo. Abracei o vento. Sorri. Tudo fazia sentido. Sentia-me um com o que me rodeava. Tudo era extensão de mim. Eu era extensão de tudo.

Sentia a escuridão em mim, mas também a luz. Via a morte, que me sorria e consolava, e apreciava a vida que me rodeava.

Sentia o medo em mim... e o Amor também.

Era um.

Rui M. Guerreiro