A escuridão e a luz. Medo e Amor. Morte e vida... Binómios de uma só realidade.
*
A fronteira entre sonho e realidade começa a esmorecer. Caminho entre a escuridão e a luz. Equilibro-me entre aquela ténue linha que as separa. Reconheço a presença de uma na outra... Reconheço a minha queda. O meu declínio.
Apesar de ter afastado a culpa, ela ganhou. Ganha sempre. Mesmo quando perde. Ela engana os meus anticorpos, disfarça-se no meu ADN. Usa-o para se espalhar. E, quando menos espero, ela irrompe pelos meus sonhos e desfaz toda a esperança.
*
Durante muito tempo, mantive-me deitado. Com suores frios. Calor. Arrepios. Fome. Dores de cabeça. Dores no corpo. Pesadelos. Alucinações.
Os fantasmas dos que matei apareciam e sentavam-se à minha cabeceira. Falavam comigo. Contavam e recontavam as nossas batalhas.
O sangue corria pelas minhas veias, como tinha escorrido pelas minhas mãos.
A noite era dia, o dia era noite. Tudo se misturava à minha volta. Tudo rodava em mim.
O sangue com o qual a minha katana se tinha alimentado escorria pelo teto e caía, gota a gota, sobre mim.
Os olhos dos que testemunharam os meus pecados voavam sobre mim. Os dedos acusadores apontavam a minha alma.
O fogo do submundo consumia o chão à minha volta. A lava dos vulcões queimava a minha pele como castigo.
As paredes da cabana ruíam e transformavam-se em placas de vazio. Onde nada se via. Onde nada existia.
O meu corpo não sentia. Ou sentia tudo.
A minha mente já não sabia o que raciocinar. Pensar. Não pensava.
As emoções tinham tomado conta de mim, junto com as alucinações, e andavam à solta.
Eu caía num poço e não encontrava o fundo.
*
Um dia. Tudo parou.
Lá fora o sol aparecia. Os pássaros cantavam. As cigarras acompanhavam. As moscas zumbiam junto ao teto. Uma libelinha pairava junto à janela.
A cama estava húmida do suor. O chão com vómito. O balde com todos os meus excrementos.
Lá fora havia vida. Cá dentro havia decadência. Morte.
Levantei-me.
Peguei no balde e fui despejar na latrina.
Fui buscar água e lavei o chão do quarto.
Peguei nos lençóis e lavei-os.
Arejei o colchão.
Despi as minhas roupas e também as lavei.
Peguei no espelho, numa tesoura e numa faca que já tinha afiado.
Fui até ao rio. Lavei-me. Cortei e fiz a barba. Prendi o cabelo. Vesti um kimono lavado. Voltei à cabana e guardei tudo.
Comi. Devagar... bem devagar...
Ergui-me e saí.
*
A baía lá estava. Apesar de transformada pelo monstro, mantinha a sua beleza.
Olhei para o céu. Senti o sol. Respirei fundo. Abracei o vento. Sorri. Tudo fazia sentido. Sentia-me um com o que me rodeava. Tudo era extensão de mim. Eu era extensão de tudo.
Sentia a escuridão em mim, mas também a luz. Via a morte, que me sorria e consolava, e apreciava a vida que me rodeava.
Sentia o medo em mim... e o Amor também.
Era um.