- Estás distante.
- Estou aqui...
- Não, não estás.
- ...
*
Caminhávamos há muito. As cigarras eram as únicas a quebrar o nosso silêncio.
A cabeça dele era um turbilhão, dava para ver pelo semblante, pelos passos rápidos e decididos.
Queria contar-lhe toda a minha vida, desde que fiquei só, naquela baía. Mas havia algo que mo impedia. Um medo que crescia em mim. Um medo de o perder.
A minha vida não foi fácil. Aliás, para uma mulher nunca é... Principalmente quando se é uma sereia.
*
Depois de o ter salvo, enquanto esperava, fui raptada por um grupo de homens.
Arrastada até uma cabana, deixaram-me presa num canto, enquanto discutiam o que haveriam de fazer com esta mulher metade peixe, metade humana.
Quando decidiram, viraram-se para mim. Todos com ar de um desejo mórbido.
Bateram à porta. Os homens pararam. Estupefactos olharam uns para os outros.
O mais destemido do bando foi abrir. À sua frente estava uma velhota baixinha.
O resto do grupo aproximou-se para ver momento tão bizarro.
Num instante, tudo mudou. Ouvi e vi uma explosão que desintegrou todos os membros do bando. Pedaços de carne e sangue espalharam-se pelo ar, caindo alguns sobre mim.
Do meio da confusão de fumo e fogo, a velhota aparece. Corta-me as cordas que me prendiam. Pega em mim, como se fosse uma simples saca, e levou-me.
*
Acordei deitada numa cama. A velhota cuidava de algo junto à lareira.
- Já acordaste? Bom, bom...
- ...
- Assim que comeres, começamos o teu treino.
- ...
Voltei a adormecer.
*
A velhota acordou-me com o cheiro de sopa.
- Come.
- Sinto-me estranha... Quem és tu?
- Precisas de comer, vai. Depois falamos.
- Não, preciso de entender o que se passa...
- Com calma...
- Não, eu.........
Quando me sentei, reparei que já não tinha a minha cauda de peixe. No seu lugar estavam duas pernas. O choque fez-me ficar com um grito suspenso na minha boca... nos meus olhos.
A velhota olhou para mim e sorriu.
- Pronto, já descobriste. Agora tens pernas.
- ...
- Nada de extraordinário. Todas as sereias e tritões podiam fazê-lo. Mas só depois de uma certa idade.
- ...
- Eu, simplesmente, acelerei o processo. É por isso que tens de treinar. Para poderes mudar, quando quiseres.
- ...
- Vá come. Depois falamos.
A velhota deixou a sopa na cabeceira da cama e saiu.
Não sei quanto tempo fiquei a olhar para as minhas novas pernas, mas quando peguei na sopa, ela estava gelada.
*
Enquanto andávamos, pensei mais do que uma vez se haveria de contar alguma coisa ao guerreiro.
Mas a dúvida mantinha-se. Aquilo que sentia por ele...