- Conta-me! Não guardes para ti...
- Não tenho nada para contar!
- Não me afastes de ti...
- ...
*
Acampámos numa clareira, já longe da aldeia. O guerreiro montou as esteiras e acendeu uma lareira.
Os grilos cantavam bem alto, ocultando todos os outros sons da floresta.
O nosso silêncio mantinha-se. Por culpa minha, eu sabia. E também sabia que o incomodava com isso. Mas aquele encontro, com aquele homem, trouxe-me lembranças. Abriu algumas feridas antigas que quero sarar... Talvez esteja a pensar demasiado. Talvez o guerreiro me pudesse ajudar... Talvez, talvez, talvez...
- Desculpa guerreiro. Peço-te só mais um pouco de paciência...
- Estou aqui...
*
Os primeiros dias de treino com as pernas foram frustrantes. Não me conseguia equilibrar. Mas a velhota insistia.
Primeiro foi o andar. Depois o andar em silêncio. Correr. Saltar. Lutar. A velhota iniciou-me nas antigas artes do ninjutsu.
*
Um dia estava à beira de desistir. O treino correu-me tão mal e magoei-me tantas vezes, que cheguei a um ponto em que pensei mesmo que teria partido alguma parte de mim.
Gritei. Gesticulei. Não aguentei e perdi o controlo emocional. Chorava ao mesmo tempo que ria. Falava disparates e calava-me logo a seguir... Até que a velhota abraçou-me e eu chorei...
- Eu sei o que estás a sofrer... Eu também era uma sereia.
- ...
- Há muitos, mas muitos anos mesmo, eu apaixonei-me como tu. Mas, ao contrário de ti, ele nunca me amou. Ele vendeu-me assim que pode.
- ...
- Fui escrava. Criada. Prostituta. Tudo que possas imaginar, até que um daimyo me comprou e, em segredo, incorporou-me numa força de elite de espiões, onde me tornei numa shinobi.
- ...
- Graças a ele, ganhei um sentido, uma família. Mas, as sereias vivem mais tempo que os humanos e isso pode tornar-se um problema. Porque vês quem amas morrer.
*
A partir desse dia, comecei a encarar aquela mulher de forma diferente. Vi que me faltava um sentido. Um sentido superior do que esperar por um homem que deveria estar morto.
Os treinos passaram a ser mais e mais exigentes. A velhota sorria quando me via a voltar obstinadamente a levantar, após cada queda.
- Quanto mais deres no treino, mais receberás depois...
E eu dava e dava.
Até que surgiu o meu primeiro trabalho como shinobi.
*
A noite ia alta. O guerreiro dormia a meu lado.
Olhei para ele e fiquei a admirar as linhas do rosto. A paz que me transmitia. Ele não merecia esta minha ausência. Este corpo presente.
Mas cada dor tem o seu tempo de cura. Só lhe podia pedir mais um pouco de paciência e esperar que ele desse.