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17 fevereiro 2019

O sorriso (2)



A liberdade da escolha... Perdemo-nos onde escolhemos...

*

Olhei para os mil olhos e para a expressão de dor refletida em mil caras. Analisei o ferimento. Fui à cozinha e fiz um emplastro com uma mistura de ervas que um velho samurai me ensinou.

Voltei ao pé da mulher. Peguei-lhe na parte de trás do pescoço e olhei-lhe nos olhos.

Com um gesto rápido retirei-lhe o resto da seta. Ela gritou e depois... desmaiou. Rasguei uma parte da roupa. Coloquei-lhe o emplastro sobre a ferida. Prendi-o bem e fui buscar um alguidar com uma toalha e água quente.

Tirei-lhe a roupa. Ficou nua, exposta. Peguei na toalha. Encharquei-a de água. Torci. A água quente escorreu-me pelas mãos. Lá fora, o vento soprava.

Limpei com todo o cuidado para não a magoar. A pele apresentava muitos hematomas.

À medida que a limpava, reparei nas várias cicatrizes que tinha no corpo. Umas recentes, outras mais antigas. Seriam elas de todas as mulheres que representava para mim? Ou seriam as dela?

Demorei-me a limpá-la, não pelo desejo que o corpo dela me despertava, nem pela sua beleza... Mas pelas cicatrizes, pelos hematomas...

Perguntava-me quem lhe teria batido. Questionava-me quem a teria ferido...

As batalhas individuais de cada um trazem feridas diferentes. Sofrimentos distintos. E aquela mulher tinha sofrido... E eu não imaginava o quanto e porquê.

Depois de acabar de a limpar, vesti-lhe um kimono meu, para que o corpo não arrefecesse.

Despertou!

- Chiu! Está tudo bem. Estou aqui. Dorme!

Ela voltou a fechar os olhos. Sorriu e a respiração voltou a ser regular.

Fui buscar uma manta e tapei-a. Ao cobri-la, ela aconchegou-se e, mais uma vez, sorriu. Um sorriso de mil bocas.

Beijei-lhe a testa. Arrumei o alguidar. Coloquei a toalha e a capa dela dentro de água.

Arrumei toda a cabana, enquanto ela dormia. Fechei as janelas e, antes de fechar a porta, fui lá fora observar e escutar. Tudo estava tranquilo...

Peguei no pau. Estendi uma esteira. Sentei-me na posição de meditação. Coloquei o pau a meu lado e passei a noite a vigiá-la.

De vez em quando, ela dizia algo a dormir, palavras soltas sem sentido. Outras vezes gemia com as dores. Eu ia observando o emplastro e trocando quando necessário, à medida que colocava toalhas de água fria na testa.

*

O sol entrava pelas frestas da janela. Estava a observar os rodopios de poeira no ar, quando ela acordou. Aproximei-me. Dei-lhe um pouco de água. Limpei-lhe a cara e ela voltou a adormecer.

Durante os momentos fiquei-a a observar... e perdi-me nesse olhar...

Rui M. Guerreiro