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17 fevereiro 2019

A vida



Ter a vida de outra pessoa nas mãos não nos dá poder. Mostra-nos a parte animalesca que gostaríamos de esquecer.

*

Enquanto ela dormia, perdi-me ao olhar para ela. Deixei o passado inundar-me...

*

A minha katana pendia sobre aquele homem que dormia. O meu olhar preso naquele rosto velho, cansado, em paz...

Quando olho para pessoas a dormir, fico a imaginar quem serão, como será a vida delas, qual a história que as trouxe aqui... A este momento.

Eu tinha de matá-lo, antes que dessem o alerta. Mas havia algo que mo impedia de fazer.

Talvez o cansaço de tantas mortes. A falta de um propósito...

Queria desistir desta vida, mas não sabia fazer outra coisa.

*

O silêncio foi interrompido por gritos. Passos de pessoas a correr. Tinha de me apressar.

Mas uma mão impediu-me de descer a katana. Uma mão esquelética, mas com a força de milhares de almas.

- Este não vai ainda. Anda comigo!

Sem saber como, estava perante a morte num deserto. À nossa volta só se via areia e estrelas.

- Chegou a minha hora?
- Não Guerreiro... Ainda tens muito por fazer.
- Que me queres?
- Manter-te vivo!

*

Acordei numa floresta, ao pé de uma mulher. Vestia-se de preto. Não tinha rosto. Não tinha voz...

Entregou-me uma sopa. Peguei-lhe e fiquei a olhar para o fumo que se erguia daquele caldo quente. Sentia-me vivo. Estranhamente vivo.

Quando ergui o olhar, a mulher já lá não estava.

*

A mulher dos mil rostos gemeu. Limpei-lhe o rosto. Troquei a toalha da testa e olhei para a ferida... O emplastro estava com sangue... Tinha de a coser.

Fui buscar uma agulha e linha.

Acordei-a. Expliquei-lhe o que ia fazer. Ela assentiu.

Tirei o emplastro. Limpei a ferida. Olhei-lhe nos olhos. Acariciei os mil rostos e dediquei-me à tarefa.

Ela nunca gritou, ou chorou, simplesmente fazia um esgar de quando em quando.

Quando terminei, voltei a limpar. Entornei um pouco de aguardente e coloquei-lhe mais um emplastro.

Ela pegou na minha mão. Virei-me. Ela tocou-me na cara... e adormeceu.

Rui M. Guerreiro