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12 fevereiro 2019

O perfume



O sonho... uma versão adormecida da realidade?

*

Acordei no meio do sapal. As águas correntes, da subida da maré, lavavam o meu corpo. O sol espreitava no meio das nuvens. A sombra de uma Valquíria rondava os céus.

A esforço levantei-me. Tinha perdido a batalha, mas os demónios tinham-me poupado a vida. Só me queriam castigar... marcar... para que não os esquecesse.

O meu corpo estava cheio de hematomas. A cabeça latejava. Olhei para um reflexo e não reconheci a pessoa que estava perante mim.

Os pássaros festejavam o final da tempestade. Voavam e cantavam à minha volta, completamente indiferentes.

O vento amainara e os raios aqueciam-me. Ainda me sentia sujo, dorido... Procurei a Valquíria, mas ela tinha partido. Talvez frustrada... Hoje ainda não, minha cara!

Continuei a andar pelo sapal. Os meus pés, pesados da dor, custavam a andar no lodo... Mas continuava em direção à baia.

Após arrastar-me muito tempo, percebi que estava perdido naquele labirinto natural. O sol encadeava-me. Os reflexos na água cegavam-me. A dor impedia o raciocínio.

Estava mesmo perdido! Caí de joelhos e gritei em desespero... Mas ninguém me ouvia.

Os pássaros fugiram com o meu grito. O único som que me restava era o da água a correr.

Decidi lavar-me num pequeno lago feito pelas águas da maré.

Atirei-me de cabeça e mergulhei até ao fundo.

Mas o fundo não existia. Havia um túnel. Eu tinha de respirar, mas alguém me puxou a perna e arrastou por aquele túnel.

Debati-me com toda a força que me restava, até que uma calma começou a invadir o corpo.

*

Acordei a tossir. Alguém estava ali, mas eu não consegui ver. O meu corpo contorcia-se para expelir a água que ainda estava nos pulmões.

Depois daqueles espasmos que nos agarram à vida, mantive-me deitado. Sossegado. A respirar. A sentir o ar a entrar em mim e a sair.

Cheirava a humidade. A musgo. A um perfume...

Um vulto aproximou-se. Estava coberto com uma capa negra e um capuz que cobria a cara. As mãos enluvadas seguraram-me no queixo.

Durante um momento fiquei ali, a olhar para um vazio e a cheirar aquele doce perfume...

A mão largou-me. Bati com a cabeça no chão e a dor voltou, mas ainda com mais força. A mão apontou para uma mesa e depois para uma porta.

O vulto ergueu-se e saiu por uma entrada que ainda não tinha visto.

Sentei-me. Olhei à minha volta. Estava numa caverna. Atrás de mim estava água. À minha volta paredes. À minha frente uma mesa, com quatro cadeiras, e uma porta ao fundo. A outra entrada, por onde o vulto desapareceu, estava um pouco mais à esquerda.

Levantei-me. Segui até à mesa e vi um pão, com um pequeno pedaço de carne fumada ao lado.

Abri o pão e meti toda a carne que consegui. Comi sofregamente. Percebi nesse momento o tamanho da fome que tinha.

Quando terminei, despejei água num copo que ali estava e bebi, uma, duas, três vezes... Limpei a boca e o queixo com as costas da mão.

Tentei ver mais qualquer coisa naquela divisão, mas estava vazia. Paredes despidas. Chão vazio. À exceção da mesa, nada mais ali estava.

Dirigi-me à porta da saída, mas algo me dizia para experimentar a outra. Devagarinho, abri e, quando os meus olhos começavam a adaptar-se à escuridão, um flash de luz cegou-me.

Combalido com a dor daquela luz, segurei-me na ombreira da porta. Mas umas mãos pegaram em mim e empurraram-me pela outra.

*

Senti-me a cair e depois um frio cortante. Tinha caído nas águas da baia. Nadei até à margem e deitei-me nas rochas.

Devagar, recuperava o fôlego e o resto da visão.

Rui M. Guerreiro