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14 fevereiro 2019

O monstro



A ilusão... Criamos ilusões para ajudar a superar a dor...

*

O sol aquecia o meu corpo. A inércia tinha tomado conta de mim. A noite preparava-se para surgir, estrelada, sem nuvens...

*

O vento fazia sentir-se quando cheguei àquela pequena aldeia. As estrelas mostravam-se em todo o seu esplendor, sem a censura da Lua.

Os anciãos receberam-me com todo o respeito e levaram-me para a casa de um deles. Ouvi dizer que precisavam de ajuda para lutarem contra um monstro.

Ali escutei as histórias, as aventuras, daquela gente e tudo o que aquele monstro lhes fizera. Desde o pastor que tinha lutado com o seu cajado e o cão, até à história em que um celeiro tinha sido destruído.

Enquanto escutava, apercebi-me de uma mulher que olhava fixamente para mim. Havia algo naquele olhar que me era familiar.

*

Afundei-me naqueles olhos. Mergulhei nas memórias de ambos.

Aí, as nossas bocas encontravam-se. As mãos deslizavam. Os olhares suspendiam-se. Os sons ecoavam. Os cheiros misturavam-se... Os corações batiam ao mesmo ritmo.

Recordei as noites juntos, os dias ligeiros, a felicidade que nos unia... Sorri...

Há muito que tinha guardado estas memórias. Pensava que as tinha esquecido... Até que a vi outra vez.

Aquele olhar...

Lembrava-me do sorriso dela ao dormir. Da forma como os dedos encaixavam no cabelo. Como o nariz se mexia enquanto ela respirava.

Também me recordava de como ela detestava coisas fora do sítio. De como ficava ansiosa...

Aquele olhar...

A última vez que o tinha visto foi num dia em que passeávamos junto ao rio. Estava um final de tarde quente. O sol punha-se por detrás das montanhas e espalhava a sua luz amarela pelo verde dos campos.

Do nada, surgiram três homens de espada em riste. Pediam dinheiro. Nós não tínhamos nada connosco... nem a minha katana.

O mais alto de todos aproximou-se de mim e tentou segurar-me, mas eu escapei-lhe e desferi-lhe um pontapé em cheio no nariz. O sangue começou logo a correr e o homem agarrou-se ao que tinha a sua orgulhosa protuberância facial.

Porém, alguém me apanhou a meio da queda e derrubou-me e espancou-me. Ela, entretanto, tinha sido agarrada pelo chefe do bando. Ele despia-a com a gula.

Fiquei a olhar para ela, enquanto me batiam... Enquanto ela... Um brilho acordou-me daquele torpor. Já tinham parado com o espancamento. O meu corpo, mal sentia a dor, por não saber qual era prioritária.

O brilho era o último raio de sol refletido numa lâmina que atravessava o abdómen da mulher que amava.

Antes de irem, pontapearam-me a cabeça e riram de felicidade e prazer.

Mais tarde... Choraram de dor... Um de cada vez.

*

Os anciãos continuavam a falar, quando acordei daquele sonho. A mulher continuava ali. Levantei-me... e atirei um shuriken.

A mulher caiu para o lado. Os aldeões ficaram em suspenso durante poucos segundos. Quando perceberam o que tinha acontecido atacaram-me.

Mas, no preciso momento em que me iam pegar. Um monstro ergueu-se do corpo daquela mulher.

A raiva de animal ferido estava presente. A fúria também... Soltei-me dos aldeões, corri para o monstro e saltei.

O único som que se ouviu a seguir foi o baque da cabeça a cair no chão.

*

A noite estava realmente muito estrelada... Ergui-me daquela rocha e segui para a cabana.

Rui M. Guerreiro