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11 fevereiro 2019

A cilada



A saudade mata, lentamente, o futuro...

*

O sangue escorria-me pela cara. Um corte na testa sobressaía. Mal conseguia ver o que me rodeava. Só conseguia sentir o cheiro a sangue, suor e podridão.

Os demónios tinham montado uma armadilha. Tinham-me atraído para um sapal. Sabiam que ali não tinha condições para me fazer valer da rapidez.

Os ataques sucediam-se. Da esquerda, da direita, de cima, de baixo... Eles rodeavam-me. Chamavam-me nomes. Acossavam a fera ferida que há em mim.

A chuva insistia em cair. A tempestade ainda não tinha passado. Os pés estavam enterrados no lodo. Custavam a levantar-se. Estava só com um pau. O sangue, misturado com o suor, cegava-me.

Não conseguia ver quase nada. Só vultos no meio da chuva. Mas sentia-lhes o cheiro. Ouvia os seus passos pesados no lodo.

*

A noite estava de tempestade. Não conseguia dormir. O meu pensamento estava longe. Parecia que todas as minhas feridas, mesmo as mais antigas, se tinham aberto.

Recordava cada mulher, cada batalha, cada demónio com quem tinha estado e lutado.

A tempestade caía lá fora. Ouvia o vento a uivar na cabana. O tamborilar da chuva no telhado e nas árvores. A trovoada interrompia o ritmo com o seu ribombar.

Mantinha-me deitado. A percorrer com os dedos cada cicatriz, a confirmar se elas se mantinham fechadas.

Mas a dor existia e sentia-a a cada bater da chuva.

A porta, com a força do vento, abriu-se. Levantei-me para a fechar, mas uma sombra fugiu quando cheguei ao pé.

Sem pensar, segui-a... Quem seria aquele ser? Corri atrás dele. Os nossos passos eram abafados pela lama e pela chuva intensa.

À medida que me aproximava, crescia em mim um desconforto. Algo estava mal. Parei.

Naquele mesmo instante, uma seta rasou-me a testa, cortando-a.

Olhei em volta. Os demónios tinham-me apanhado.

*

Esperei muito tempo por um ataque deles. Limpava a cara. Tentava ver alguma coisa. Mas não conseguia distinguir nenhum contorno.

Foi então que eles atacaram. Todos ao mesmo tempo. A minha mão segurou com força o pau e preparei-me para defender.

Ajeitei os pés, a posição do meu corpo e fechei os olhos. Sabia que iria perder aquela batalha, só não sabia qual o preço que ia pagar...

*

Onde estará a mulher dos mil rostos, das inúmeras vozes e de todos os sorrisos?

Foi o meu último pensamento, antes de cair no chão...

Rui M. Guerreiro