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07 fevereiro 2019

A culpa



Um toque... Uma mão na cara e sonhamos juntos...

*

Era de manhã. Uma névoa cobria o chão da floresta. Caminhei por ela até chegar à baia.

O peso daquele sonho perseguia-me... Aquela mulher que me salvou, numa outra vida.

O problema dos sentimentos. Reformulo, o problema do amor é que não conhece o tempo, como o ser humano o concebeu. Para o amor o tempo, a vida, em que estamos é contínuo. Ele não morre como nós nem se sujeita à perceção que temos da realidade.

*

Todas as manhãs, ia à baía e sentava-me naquela rocha vermelha. Ficava ali. Meditava. Esperava. Observava. Mas a mulher dos mil rostos não voltava. A sereia que me salvou na outra vida... também não.

No fundo, não sabia quem esperava. Se uma, ou outra. Mas o sentimento era o mesmo. Aquela vontade de as conhecer, de perceber o mais fundo do seu ser, de as beijar... de as amar.

Acho que me fascinei pelo amor. Pelo acto de amar. Mas, neste momento, estava só... muito só...

Pensava em todas as mulheres que passaram por mim, que marcaram a minha vida. Recordei-me dos sorrisos, das risadas, do prazer, da alegria que sentíamos juntos... Mas também me lembrei da dor. A que sofri... e... a... que provoquei.

É por esse motivo que sempre preferi a katana. Os duelos. As batalhas. É tudo mais simples. Só existe dor.

Mas o amor...

De repente, uma onda salpicou-me e eu acordei daquela letargia. Estranho estar a pensar sobre o amor, sobre as mulheres da minha vida, sobre a mulher dos mil rostos, a sereia... Será que são todas uma única mulher? E, afinal, sempre amei a mesma mulher, mas com facetas diferentes?

Levantei-me. Foi nessa altura que reparei. Estava cercado por demónios. Eles cheiravam o medo, a dor, a culpa, à distância...

Eu sabia que a luta não tinha terminado. Que este tinha sido só um intervalo.

Eles atacaram-me. Todos ao mesmo tempo. Tive que recordar todos os movimentos que aprendera naquela vida que deixara.

Desviei-me do golpe que vinha da direita. Pontapeei o do meio. Torci a mão daquele que me atacava pela esquerda. Peguei na katana deste último e ela deu-lhe a honra de morrer.

Entretanto, os outros dois tinham-se aproximado, com mais três. Formavam um círculo à minha volta.

Ajoelhei-me. Espetei a katana no chão e equilibrei-me nela. Fechei os olhos e concentrei-me no que me rodeava.

Ouvia as ondas a baterem nas rochas. O som das folhas sacudidas pelo vento. Sentia o cheiro da terra debaixo de mim, do sangue que escorria a meu lado, do suor... e da maresia que me apaziguava a dor de ter de combater mais um dia.

Reparei nessa altura que estava cansado. Mais valia deixá-los atacar e receber a morte. Essa velha companheira...

Mas ainda não tinha chegado o meu tempo. Não seria hoje que os demónios me venceriam. Recordava os mil sorrisos... a mão que me afagava o rosto depois do naufrágio...

Atacaram. Puxei a katana e matei-os. A velocidade sempre tinha sido uma das minhas vantagens... e, naquele dia, ela voltou a ser.

Os corpos dos demónios estavam à minha volta. Conspurcavam o chão daquele local, daquele templo. Mas tinham lutado com honra.

Fiz uma jangada, com uns ramos que tinha caído da tempestade. Juntei os cadáveres nela. Ateei fogo e larguei-a na baía.

Quanto ao sangue, as chuvas iriam lavá-lo...

Foi nessa altura que reparei em mim, nas minhas feridas e hematomas.

Mergulhei nas águas da baía. Lavei-me daquela batalha.

*

A casa continuava vazia. Comi. Deitei-me. Sonhei...

Rui M. Guerreiro