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07 fevereiro 2019

Fortuna



O silêncio... O silêncio envolve-me como uma manta quente...

*

Os dias têm passado devagar. As feridas têm cicatrizado.

Continuo a procurá-la, assim que acordo. Mas cedo me lembro do vazio que ela deixou.

*

As ondas chamavam-me. Salpicavam-me a cara, o corpo, enquanto meditava. Sentia o sol a aquecer-me a pele.

Na minha meditação, imaginava diferentes tipos de morte. Treinava a mente, o corpo e o coração para a impermanência da minha vida. Para a consciência de que nada do que me rodeia é meu. Tudo o que penso ser meu é, afinal, um empréstimo da deusa Fortuna.

*

No início do meu treino, este exercício servia para perdermos o medo da morte. Para que combatessemos cada batalha, como se fosse a última.

Mas eu nunca tive medo da morte. Pensava eu...

*

Um dia, numa outra vida, entrei clandestino num barco. Procurava fugir de uma vida de escravatura.

Tudo corria bem. Ninguém me tinha detectado e conseguia surripiar a quantidade exacta de comida para me dar o que necessitava, sem levantar suspeitas.

Até que uma tempestade, fez com que o barco se virasse...

Caí ao mar, no instante em que uma grande onda lavou o convés. Estava a beber do barril onde eles guardavam a água potável.

O barril foi atrás de mim e bateu-me na cabeça. Desmaiei.

Mais tarde, quando acordei, estava numa baía. Uma mulher acendia uma fogueira. A noite tinha caído e começava a fazer frio.

Levantei-me. Sentei-me a seu lado e conversámos.

Os minutos passaram a horas. As horas a dias. Os nossos encontros estendiam-se pelos dias que passavam.

Todas as manhãs encontravamo-nos. Aproveitava as tardes e as noites para trabalhar na aldeia ao pé, para ganhar dinheiro e, com sorte, comprar uma pequena terra para vivermos...

No entanto, a deusa Fortuna não gostou da nossa felicidade... Do nosso amor... E um dia, um grupo de samurais apanhou-me.

Enfiaram-me para um beco. Espancaram-me. E Espancaram-me. Até perder todos os sentidos. Depois acordaram-me e mostraram a katana que me ia matar.

Com dois gestos rápidos, cortaram-me a barriga em forma de cruz. Empurraram-me para o chão e começaram a urinar para cima de mim.

*

Acordei! Tinha adormecido. As ondas continuavam a bater. Chamavam-me. Mas desta vez ignorei-as e voltei costas.

Segui o meu caminho até à cabana... E... Abracei o vazio que me recebeu.

Rui M. Guerreiro