Pesquisar neste blogue

04 fevereiro 2019

A ausência



Há sorrisos que contam histórias... O dela contava segredos...

*

O sorriso da mulher dos mil rostos intriga-me. A forma como ela sorri, como transparece o que sente... Mesmo através de tantos rostos.

*

Quando acordei esta manhã, e abri os olhos, ela estava sentada ao meu lado. Sorria. Mas era um sorriso triste. De saudade.

Lá fora, ainda chovia... Mas era aquela chuva errática, típica dos finais de tempestade. O sol tentava despontar, mas como que a medo de incomodar.

Ainda não se sentia o movimento típico dos animais de manhã. Escondiam-se destas últimas gotas.

Sentia-se o cheiro da terra encharcada, com o das plantas molhadas. Era um cheiro pesado e húmido.

Evitava olhar para ela. Sentado na cama, fixava o olhar lá fora. Sentia com a mão os pensos que cobriam as feridas, que tinham voltado a cicatrizar.

Tentava agarrar-me a algo para não chorar. Algo que tirasse este peso no coração.

À minha mente, assaltavam as palavras da morte. Aquela morte que me acariciara no meio do campo de batalha. A morte que, de vez em quando, me lembrava que aquela batalha ainda não seria a última...

Vi um rato a sair debaixo da cabana. A cheirar o ar. A ouvir os sons. Antes de voltar por onde tinha vindo.

Ela mantinha-se na mesma posição, com o mesmo sorriso... À espera que olhasse para ela.

- Tens de saber libertar, de confiar, para poderes viver.

Estas tinham sido as palavras da morte, ali, no meio dos corpos que me rodeavam. A tempestade tinha sido eu nesse dia.

Respirei fundo. Olhei para ela. Os rostos continuavam a suceder-se.

- Eu sei o que vais dizer... Vais-te embora.
- O que tinha a fazer por ti, já o fiz. Agora és tu que tens de fazer por ti...
- ...
- ...
- Vou...
- Um dia, quem sabe?

E com aquela pergunta, levantou-se. Pegou numa trouxa feita de pano que estava seu lado. Olhou para o fundo dos meus olhos, da minha alma. Acariciou o meu coração. Beijou-me levemente nos lábios e... partiu...

*

Estou só. Depois de todos estes dias com ela, é estranho ver a cabana vazia. Nada parece ter vida.

Todas as manhãs, espero que ela regresse. Todas as vezes que chove, olho por uma nesga da janela, em busca de algo. De um sorriso...

*

Há sorrisos que contam segredos... Mas já não os oiço.

Rui M. Guerreiro