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22 fevereiro 2019

A gruta



Por vezes temos de nos esconder. De ser algo que não somos... para sobreviver...

*

Num dos dias em que voltava da aldeia, para a cabana, passei por uma escarpa. Parei. Olhei para o horizonte infinito e fechei os olhos. A brisa. O cheiro...

*

As escarpas eram muito altas. Escuras. Rugosas. Pequenos pés de gigante há muito adormecido.

Olhava para o fundo. As ondas batiam de forma violenta lá em baixo. Procurava um caminho antigo, que só se conseguia ver com a madrugada.

*

Era novo, muito novo, quando iniciei a minha jornada. Esta era mais uma etapa.

O meu mestre tinha ordenado a todos os seus alunos a procurarem a Gruta dos Pés de Gigante. Quem lá chegasse primeiro poderia ficar com o tesouro que lá estava.

Confesso que nada disse na altura, mas eu conhecia muito bem aquela zona. As histórias de infância, contadas nas noites de Inverno, tinham desvendado o segredo do caminho da madrugada e do tesouro guardado por uma legião de demónios na Gruta dos Pés de Gigante.

*

Os primeiros raios de sol despontaram por entre as nuvens. Raios pérola que invadiam o horizonte, que clareavam os mares, mas que agigantavam as escarpas.

No meio das rochas, consegui ver um trilho sinuoso, ladeado por pequenas plantas. Não sei se seria magia, mas uma certa luminiscência sobressaia no meio da sombra.

Respirei fundo. Olhei para o nascer de sol. Abri os braços e lancei um uivo, vindo do mais fundo do meu ser.

*

O primeiro passo. O primeiro passo é sempre o mais difícil de dar. Mas eu dei e segui a luminiscência. O medo servia-me de bússola.

*

A descida foi difícil. Houve momentos em que quase escorreguei na direção do mar, mas consegui sempre equilibrar-me.

Quando cheguei à entrada da gruta, o sol já estava a meio caminho do meio-dia. Os cortes nas mãos, nos braços e pernas, ardiam com a água salgada da rebentação ali ao pé.

O suor cobria-me o corpo. O cansaço fazia doer os músculos. Mas tinha de continuar.

Assim que entrei na gruta, dois demónios acercaram-se de mim. Com gestos rápidos, consegui evitá-los. Mas tive que recuar...

Demorei-me ainda a olhar para a escuridão que tinha perante mim. Os demónios que me esperavam.

Sem arma. Sem muita técnica ainda, o desafio era maior. Restava-me...

Fui até à zona de rebentação. Despi o kimono. Peguei na lama cinza que ali se encontrava e cobri-me com ela.

Ao invés de entrar intempestivamente na gruta, entrei devagar. Em silêncio. Quem me visse, só encontraria o branco dos meus olhos.

Graças a este subterfúgio, consegui passar pelos guardas.

Continuei a descer bem fundo na terra. A luminiscência voltou a aparecer. Surgia a cada passo que dava.

No final da grande descida estava uma velha ponte de madeira e de corda. Por baixo dela, uma depressão sem fundo à vista.

Respirei fundo e lentamente comecei a passar a ponte que rangia.

A corda da direita parte-se. Fico agarrado à da esquerda. A ponte pendurada. Seguro-me com as duas mãos... Mas o peso é demasiado e a outra corda... também se parte.

Vejo-me a cair com a corda contra a parede que descia pela depressão. Encolho-me e embato na rocha. A dor da batida quase me faz largar. Mas o espírito de sobrevivência é maior.

Fico ali um tempo a sentir o frio da parede contra o meu corpo dorido. A respirar.

Olho para cima e começo a escalar. Ora aproveitando os restos da ponte, ora as saliências da rocha.

Sinto o cheiro da humidade, do suor, misturado com lama e sangue. A cada movimento, o corpo queixa-se. Mas eu sigo... A alternativa não me parece melhor...

Quando chego ao topo, vejo uma luz mais à frente. Sigo devagar, agarrado ao meu lado direito.

A luz era de uma fogueira que iluminava um grande espaço. Uma câmara coberta por uma cúpula de rocha. À volta da fogueira, demónios, que pararam de dançar com a minha presença.

A dor que sentia, o cansaço, fizeram-me ficar indiferente a tudo. Preparei-me para a batalha.

Eles atacaram em força. Sem saber como, comecei a correr e ataquei um deles. Roubei-lhe a katana que empunhava e matei-o com ela. De seguida, um por um foram caindo à minha frente.

Ferido, batido, caído, continuei a carnificina. À minha frente só via vermelho de sangue e o brilho da minha lâmina.

Quando tudo acabou... Desmaiei.

*

Não sei quanto tempo fiquei ali. Deitado sobre o meu sangue e dos demónios. Quando acordei. Estava uma velha feiticeira. Sorria.

Fez um gesto para a seguir. Levantei-me a esforço e fui... atrás dela.

Ela parou. Desenhou na rocha um símbolo, com uma luminiscência que lhe saía dos dedos.

Uma porta abriu e, perante mim, estava o tesouro. Um pergaminho.

Desenrolei.

- O medo é a tua bússola. O Amor o teu destino, o teu caminho...

Voltei a enrolar. A velha aproximou-se. Tocou-me na testa.

*

O mar... Aquele horizonte, onde o sol se põe... Aconteceu há tantos anos. Era tão ingénuo para perceber aquela mensagem. Agora, finalmente, vejo...

- Onde estás, mulher dos mil rostos? Onde estás sereia?

E ao longe... o mar...

Rui M. Guerreiro