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23 fevereiro 2019

A artesã


Os pequenos gestos. Os grandes. As escolhas. O amor. O ódio. Rotinas para nos sentirmos vivos.

*

Gosto de ir à aldeia. Ver os artesãos. Ver como trabalham o vime, as madeiras, o barro...

Todos os gestos, precisos como o corte de uma katana. Feitos de escolhas, feitos de movimento.

Se olharmos o tempo suficiente, reparamos na dança das mãos. Como elas se movem. Como elas agem em uníssono, trabalhando uma ideia. Um sonho que só existe na cabeça daquele artesão.

*

Havia uma artesã na aldeia onde cresci. Ainda era jovem quando enviuvou. Ainda era nova quando começou a moldar a madeira.

Visitava-a todos os dias. Não para aprender a esculpir. Nem para a ajudar. Como lhe dizia sempre que aparecia.

Ia para a ver. Estava apaixonado por ela. E ela sabia...

- Cada golpe na madeira é uma opção. Cada gesto, uma escolha que serve um propósito.
- ...
- Estás a ouvir-me?
- Ah, sim! Desculpa!

Ela sorria. Sorria sempre que me chamava a atenção. Que me via. Sempre que me acolhia nos seus braços...

- Porque me aceitas?
- ...
- Porquê eu? Há tantos homens e rapazes que te querem...
- ...

Ao fim de alguns tempos, ela começou a afastar-se. Adiava as aulas. Evitava olhar para mim.

Sentia um adeus...

*

Um dia deixei de a ver. Partiu?

Passado um tempo, vi-a presa numa árvore que ficava no centro da aldeia. As pessoas que passavam ou ignoravam, ou cuspiam, ou humilhavam.

Fui a correr ter com ela. Indiferente às injúrias e comentários. Limpei-lhe a cara. Dei-lhe água. Beijei-lhe a face.

- Vai-te embora Guerreiro. Sou uma proscrita. Uma puta! Vai! Deixa-me!
- Não! Não te posso deixar...
- Guerreiro, não me faças isto... Vai!
- ...
- Guerreiro... Lembra-te, cada gesto é uma escolha... e eu escolhi receber-te em mim. Não porque te amava... Mas porque precisava do teu amor, para me sentir viva!

*

O chefe da aldeia apareceu com um samurai. Leu a sentença. O samurai executou-a...

Vi a cabeça da primeira mulher a quem me entreguei... que amei... a rolar pelo chão até aos meus pés.

Todos olharam para mim. Aguentei o peso da aldeia durante um tempo e parti com a cabeça nas mãos.

O sangue escorria-me pelos dedos, enquanto as lágrimas pelo rosto.

Fui até à cabana dela. Peguei num pequeno corvo que ela tinha esculpido para mim. Guardei-o.

Pousei a cabeça na almofada da cama.

Beijei-lhe a testa.

- Eu escolhi amar-te! Não para me sentir vivo, mas para poder viver...

Assim que acabei de dizer isto, ateei fogo à cama e parti da terra que me viu crescer.

*

Os aldeões. A aldeia. Animam-me o espírito.

É por isso que venho todos os dias. Para me animar, enquanto espero pela mulher dos mil rostos, e para contar histórias... Todos os aldeões gostam de pagar por uma boa história!

Rui M. Guerreiro