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02 fevereiro 2019

A criança



As memórias... as memórias muitas vezes traem-nos...

*

Há muitos anos encontrei uma criança no meu caminho. Estava só, na beira da estrada.

Eu não a convidei. Ela não pediu. Simplesmente juntámo-nos.

Ela parava a cada flor, cada musgo, cada borboleta que encontrava no caminho. Eu? Continuava em silêncio.

À hora das refeições parávamos e partilhávamos o que cada um tinha. À noite, ela procurava o calor do meu corpo.

A princípio achava estranha toda esta nova dinâmica. Esta nova presença. Mas com os dias a passarem, acostumei-me à doçura daquela criança. Melhor, afeiçoei-me ao seu carinho, alegria e espontaneidade.

Mas, no fundo, sabia que não ia durar. Eu sabia que havia um risco. Há sempre um risco quando mostramos a nossa vulnerabilidade...

*

Ao fim de duas semanas juntos, apareceram à nossa frente três samurais. Traziam uma imagem da criança. Ela era uma das filhas mais novas do Xógum.

A criança escondeu-se atrás de mim. Agarrada à minha perna, com toda a força que tinha.

Os samurais falavam, ameaçavam, mas eu não os ouvia. Sentia simplesmente o coração daquela pequena criança na minha perna. Um coração tão pequeno, mas que se fazia sentir no meu.

Os samurais desembainharam as katanas e atacaram-me.

Só tive tempo de agarrar na criança e colocá-la atrás de uma árvore. As katanas entrecruzaram-se.

As aves voaram. Os pequenos roedores que ali vagueavam, correram para os refúgios. Os insetos pararam.

O silêncio pesava à volta das katanas que entrechocavam-se.

Ferida a ferida, estocada a estocada, os samurais foram caindo. Um a um, até fazer... dois?

O terceiro tinha aproveitado a confusão e fugira. Corri para trás da árvore e nada. Tentei ouvir algo, mas o silêncio pesava.

Ao fundo, ouvi um ramo a quebrar-se. Corri o mais depressa que conseguia. Os cortes que tinha sofrido escorriam sangue e suor, numa mistura que tão bem conhecia.

Ao fundo vi o samurai. Corria com a criança ao colo.

Mas eu estava leve. Era mais rápido. E, num instante, consegui apanhá-lo.

*

A dor que se sente ao ver o corpo de uma criança inerte, sem vida, é algo que não se consegue descrever. Nenhuma comparação, nenhuma metáfora, consegue chegar a um décimo da imensidão que cai sobre nós.

A criança estava morta.

Não sei como, nem porquê... Só sei que a minha única reação foi enfiar a minha katana no corpo daquele samurai. A minha fúria fez que só parasse de olhar nos olhos dele quando os vi ficar sem luz, sem vida.

Depois de tirar e de limpar a katana, peguei na criança com extremo carinho. As lágrimas corriam, enquanto a deitei numa clareira sobre uma pira de lenha, que tinha reunido.

Ateei o lume e fui-me embora...

*

A partir daquele dia, o meu coração conheceu um vazio que nunca lhe tinha sido apresentado. A dor que levava comigo era diferente de todas as outras. Mas os meus passos... o meu caminho... tornaram-se diferentes.

Cada flor, cada musgo, cada borboleta... Passaram a vibrar de cores. Via-me a parar quando algo sobressaia ao meu olhar. Apercebia-me de um sorriso, quando sentia a presença daquela criança a meu lado...

*

Acordei. Ainda era de noite. As dores das feridas mantinham-se.

Levantei-me a custo. Precisava de ar. De respirar. De absorver o fresco da noite.

Nesse momento, apercebi-me da mulher dos mil rostos. Dormia. As caras continuavam a suceder-se. Mas nesses rostos via um sorriso, de vários lábios.

Aproximei-me. Tapei-a. Ela ajeitou o corpo. E, inesperadamente, vi-me a beijar, ao de leve, a testa daquela mulher que tem cuidado de mim.

Rui M. Guerreiro