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28 fevereiro 2019

A chuva



A chuva lava. Rega. Alimenta. Destrói...

*

Contar histórias na aldeia, tinha um efeito relaxante em mim. Descobri que era bom a contá-las e que as pessoas gostavam de as ouvir. No fundo, ajudava-as a trazer alguma emoção ao seu pesado dia.

No entanto, o contar histórias, abre as portas da memória... faz-nos lembrar coisas que preferíamos ter esquecido. Apagado em nós.

*

A primeira vez que fui a uma cidade foi... como hei de dizer... estranho? Estava habituado a aldeias. A lutar em batalhas nos campos. Às florestas. Aos cheiros de estrume, de terra molhada, das árvores, das fogueiras, do mar...

Na cidade, o ar é diferente. Pesado. Fétido. Como se as ruas, apesar do movimento, estivessem mortas.

As pessoas... Aceleradas. Sempre a correr para algum lugar. Os cavalos, as carroças, alinhados, em ordem...

Apesar da ordem, sentia-se tensão. Tudo pesava. Mesmo as pessoas pareciam cansadas, com algo sobre os ombros. Como se a própria cidade, o seu cheiro, pressa, estivesse sobre elas.

Infelizmente, não estava lá para a visitar. Apesar de tudo o que via de negativo ali, sentia-me fascinado por algo tão diferente.

Se viveria lá? Talvez não... Mas havia algo ali... Talvez a anonimidade. Ninguém se interessava por mim. Era só mais um naquelas artérias.

*

Após algumas horas, perdido pelas ruas, encontrei a loja que procurava. O trabalho deveria ser simples. Desta vez, não iria alimentar a minha katana. Só teria que extorquir uma certa quantia de dinheiro que aquele lojista devia ao meu cliente.

Foi nessa altura que começou a chover. Torrencialmente. Num instante as ruas tornaram-se em rios há muito esquecidos.

A água escorria por mim. Lavava-me... Olhei para o céu. Lembrei-me da minha infância... Quando ficava no meio da tempestade, com braços abertos, na esperança de me tornar chuva, vento, raio...

O barulho da porta da loja acordou-me daquele sonho. Os últimos clientes tinham saído e o dono tinha fechado as cortinas.

Aproximei-me da porta. Bati.

Alguém mexeu na cortina.

Dei um pontapé na fechadura. A porta abriu e bateu em quem espreitava.

Entrei e estendi a minha katana à altura dos olhos da mulher que tinha caído.

- O dono! Já!
- ...
- O velho! Onde está ele?
- Mas...
- Estou a perder a paciência... Onde está o velho?
- Mas ele morreu, nobre samurai... Há dois dias!
- ...
- Um nobre samurai como o senhor. Veio reclamar a dívida.
- Quem és tu?
- A filha, nobre samurai.
- Esse samurai de quem falas. Matou o velho porquê? Não tinham dinheiro?
- Tínhamos... Pagámos! E...
- Ele matou-o?
- Sim!
- O que te fez?

A mulher virou a cara e começou a chorar...

As águas lá fora continuavam a aumentar de caudal. A chuva insistia em cair...

Guardei a minha katana. Ajudei a mulher a levantar.

- Vai para dentro e tranca a porta.
- Mas...
- Faz o que te digo!

Assim que ela acabou de fechar. Ele apareceu... O tal nobre samurai. O corpo era uma sombra no meio da chuva.

Tudo não passava de uma armadilha.

Saí da loja. Desembainhei a katana. Esperei.

- Deves estar a pensar porque te queremos matar, não deves?

À minha volta surgiram mais três samurais.

- A razão é muito simples: porque vales muito dinheiro morto.
- ...
- Não dizes nada? Não interessa, porque daqui a pouco terei a tua cabeça na minha mão.

Os risos foram abafados pela chuva e pelo corte da minha katana. A cabeça rolou pelas águas correntes...

Os outros três samurais, quando reagiram... Já era tarde demais!

O primeiro que se aproximou, foi brindado com um corte limpo pelo joelho. Caiu. E, sem se aperceber, espetei-lhe a minha katana pelas costas, na direção do coração.

O segundo, cortei-lhe o braço que erguia a espada e cortei na transversal as costas.

O terceiro, simplesmente enfiei-lhe a katana pelo baixo-ventre.

*

As ruas levavam sangue nas águas. A chuva lavava-me a espada... a cara... o corpo...

Queria que ela me lavasse a alma, mas a minha alma estava longe. Já há muito que não estava ali.

A mulher veio à porta. Fiz-lhe uma vénia e parti.

Deixei-me levar pelas ruas mortas daquela cidade. Naveguei por elas, enquanto a chuva me protegia dos raios de luz que tanto ansiava encontrar um dia.

*

A memória... A memória... A memória é, tantas vezes, aliada da dor. Daquela dor que se pega ao coração, que escorre pelos poros, que invade a nossa alma... Quando ela se digna a aparecer.

Às vezes apetecia-me apagar tudo. Pegar na minha wakizashi e cometer seppuku. Seria tão mais fácil...

Assim deixaria de sentir a dor. O passado. O sangue...

Sem me aperceber, a chuva tinha parado e encontrava-me na baía. A brisa voltava a falar comigo...

- Persiste, meu guerreiro!

E eu acreditei naquelas palavras. Agarrei-me a elas e construí a minha Esperança...

Rui M. Guerreiro