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30 janeiro 2019

A sereia



Há feridas que temos de abrir, para expurgar o pus...

*

A febre voltou. O peso da dormência. O sangue a escorrer de feridas antigas.

A mulher de muitos rostos, de muitas vozes, continuava a cuidar de mim. Com ternura. Por vezes, sentia o amor com que ela me cuidava.

No entanto, eu nada respondia àquele dar. Sentia-me egoísta. Só queria receber. Sentia cada vez mais o cansaço da minha vida anterior. Os dias eram puxados pela gravidade para os ombros...

*

- Fala-me sobre ti.
- O que queres saber?
- O teu nome...
- Já te disse, tenho muitos!
- ...

*

- Conta-me uma história.
- Sobre o quê?
- Fala-me sobre ti...
- ...
- Desculpa, sobre o mar então...

*

Há muitos anos o mar tinha menos água que agora. Podias dar a volta ao planeta sem molhar os pés, ou até mesmo saltar sobre um riacho.

Nesse pequeno mar, vivia uma sereia. A última da sua espécie. A única sobrevivente de uma guerra que colocou frente-a-frente os povos do mar com os da terra.

Protegida pela sorte, ou por algum factor divino, ela conseguiu fugir a uma morte certa.

Um dia, um homem caiu ao mar e ela, por instinto, salvou-o de morte certa. A partir daí começaram a encontrar-se todos os dias, ao raiar do sol, numa praia como esta, em forma de bacia e rodeada de rochas e escarpas.

Todos os dias falavam, contavam histórias do que viam e das viagens que tinham feito. Porém, uma vez ele não apareceu. Duas vezes. Três vezes. As vezes, os dias, deram lugar a semanas e a meses. E ele... não aparecia...

A sereia, cada vez mais triste, começou a chorar. Onde estaria o homem por quem se apaixonou?

O choro começou a ser regular, compulsivo. Desesperado.

As lágrimas caídas nas ondas, começaram a encher o mar. Mais e mais. Até aos níveis que conhecemos hoje.

A sereia, de repente, deixou de chorar. Já não tinha mais lágrimas para despejar...

Numa manhã, nadou até à enseada onde se encontrava com aquele homem, pegou numa adaga que tinha guardado dos tempos da guerra e cometeu seppuku.

O sangue que escorreu, depositou-se nas pedras onde ela se sentara.

A alma, com a dor do amor perdido, traído, ficou presa naquela enseada, a quem o povo começou a chamar de Baía da Sereia Triste.

Há dias em que, ainda hoje, se alguém for lá ao raiar da manhã, ouve o choro da sereia...

*

- Mas esse é o nome da...
- Tens de descansar Guerreiro!
- ...

*

- Diz-me, onde vais todas as manhãs?
- Dorme, precisas de recuperar.
- ...

Rui M. Guerreiro